O vazio curador

  • 7 ago

Comecei a viver recentemente uma angústia e uma melancolia cada vez maiores por conta de “não ter pelo que viver” (foi assim que inicialmente descrevi minha situação). E se não ter pelo que viver parece uma realidade precária e angustiante à primeira vista, é porque de fato é. Mas como cheguei nela? Creio que do jeito que quase todo mundo chega: alcançando a tão sonhada estabilidade nos âmbitos profissional, emocional e financeiro. E mais: com pouca necessidade de provar meu valor e minha competência e sem pressa de me envolver romanticamente com outra pessoa a não ser que realmente valha a pena.

O interessante é que depois de “resolver” isso tudo que eu queria resolver na minha vida, parecia que não havia me restado o que fazer dela. Comecei a sentir uma solidão crescendo, uma necessidade de buscar alguém, de buscar algo pelo que buscar. Contudo, por mais que procurasse – e, de fato, não faltam pessoas ou coisas para preencher nossa vida atribulada de hoje – nada nem ninguém afugentava essa sensação estranha. Estranha porque me via ambivalente: por um lado, sentia uma paz sem precedentes por não precisar provar nada a ninguém nem me desgastar com as preocupações e inseguranças que me consumiam a vida inteira; por outro, sentia esse vazio de “ter pelo que viver” que, a princípio, interpretei como um problema a ser resolvido.

Em meio a essa ambivalência, certa cliente também se queixou em uma sessão de sentir um vazio que não sabia como resolver. Como a angústia da minha cliente se encontrou com a minha, pude em benefício dela dar voz a uma pergunta que ainda não conseguira fazer a mim mesmo: “Esse vazio precisa mesmo ser resolvido? Escuta esse vazio agora. É isso mesmo que ele tá te pedindo?” Após um tempo de reflexão cuidadosa, percebemos que esse vazio sinalizava a não obrigatoriedade de existir para estar com alguém ou dar conta de alguma coisa. Logo, o vazio não era para ser resolvido, mas aproveitado como possibilidade e acontecimento natural da vida.

Foi a prova viva de que às vezes é o terapeuta quem tem de pagar a sessão para o cliente. Pude até ver Deus me dando uma piscadela. Não teve como não entender que meu vazio também não precisava ser resolvido. Se antes eu o vivia de modo conflitante, passei a vivê-lo como um grande privilégio. Sim, pois o espírito da chamada “sociedade do cansaço” (expressão cunhada pelo filósofo coreano Byung-Chul Han) obriga o ser humano a viver em contínuo desempenho e atenção multidirecionada sem jamais viver a possibilidade da pausa e da contemplação.

Observe se você já disse frases como “eu não tenho tempo pra ficar doente/triste/cansado”, “eu não consigo ficar parado”, “toda hora preciso estar fazendo alguma coisa”, “acho que me falta força de vontade pra sair do lugar”. Perceba também como fazemos essas afirmações em tom de autoelogio, como se sentíssemos que estamos perfeitamente adequados ao que a “vida” exige dos que querem crescer, ter sucesso e alcançar a felicidade. Na verdade, estamos perfeitamente adequados à exigência obsessiva por uma vida ativa. Ao discorrer sobre a sociedade do cansaço, Han denuncia o excesso de positividade – referente ao excesso de estímulos, informações e impulsos que saturam nossa existência. Há mais valor na atenção multidirecionada e rapidamente cambiante do que na atenção longa e concentrada que pode dar lugar à negatividade da vida. Não à toa, o excesso de positividade configura uma sociedade potencializadora de condições como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e a Síndrome de Burnout.

Além destes, os transtornos ansiosos e de humor ficam cada vez mais frequentes. A pressa para “resolver” os sentimentos negativos e a incapacidade de aprofundamento contemplativo tornam a vivência da ansiedade e da depressão cada vez menos esclarecedora das necessidades humanas (e, assim, potencializada a níveis patológicos). Ao mesmo tempo, há também uma moral psicopatológica interessada exclusivamente em restabelecer e preservar o caráter funcional da vida das pessoas. Com isso, acaba alienando o fator circunstancial das experiências humanas e relegando-as a disfunções corporais e cognitivas, censurando e obscurecendo a possibilidade de crescimento e sabedoria intrínsecos ao sofrimento humano.

Então, a partir da perspectiva de Han e da sabedoria encontrada e expressa no contato com a minha cliente, estou muito mais inteiro e entregue às pausas e vazios que vivo no dia a dia. Sei agora que este vazio é um vazio curador. Curador da ansiedade de desempenho, dos sentimentos de desvalia por não estar fazendo alguma coisa ou aprimorando minhas competências, curador da culpa e da vergonha por não ser “tudo o que eu posso ser”.

Me perguntaram numa palestra o que eu fiz para chegar a esse sentimento, ao que respondi instantaneamente: “Dez anos de terapia!” Nunca perco uma oportunidade de ressaltar a importância da terapia, mas depois de brincar com a pergunta da participante, fui inspirado por ela a reconhecer que o princípio que me norteou no caminho rumo a esse vazio curador foi a coragem de bancar a solidão da maturidade. E por solidão não me refiro ao isolamento emocional, moral e ético que caracteriza nosso tempo, mas à virtude de não me escorar e me aprisionar a referenciais externos para medir meu valor, validar minhas escolhas e dar sentido à minha existência.

Cheguei a esse vazio curador munido também da humildade para reconhecer e aceitar meus limites. A sociedade do cansaço valoriza somente a potência e rechaça a impotência. Nela, precisamos ser suficientes, disponíveis full time, trabalhar enquanto outros dormem, jamais desperdiçar nosso potencial, lutar para ser tudo aquilo que podemos ser. Por favor… Ter de ser tudo o que eu posso ser é um verdadeiro inferno! Por que não simplesmente ser o que sou?

A crença ilusória de que você pode ser o que você quiser é o que Han chama de liberdade coercitiva. Uma liberdade que disfarça uma verdadeira compulsão pelo igual, pela homogeneização alienante. Uma liberdade que nos torna autômatos disfarçados de autônomos enquanto excomunga das relações humanas a alteridade e a vivência da dor. Ter de ser tudo é, ao mesmo tempo, não ser nada.

Ainda bem que sempre guardo as palavras de Kierkegaard. “O maior desespero do homem é ter de ser outro antes de ser si mesmo.”

Pedro Paulo Coelho (@pedroopaulocoelhoo)

Compartilhe: