

Teoria e prática na psicologia
Como diria Freud (1912): “Não devemos esquecer que os pacientes vêm até nós não com doenças, mas com suas vidas.”
E como diria Danilo Suassuna: “Ser um psicólogo atuante é saber que a prática não se reduz à repetição de manuais, mas ao encontro comprometido entre teoria e realidade.”
Essas duas frases sintetizam o coração do presente texto: um convite à reflexão sobre a tensão entre a dogmática e a prática na psicologia. Muito além de uma discussão teórica, trata-se de uma problematização vital para a formação, a atuação e a responsabilidade social dos psicólogos e psicólogas em tempos complexos.
Este texto integra o projeto do Instituto Suassuna de formação de psicólogos atuantes.
Parte I – O que entendemos por dogmática na psicologia?
A palavra “dogma” tem origem religiosa, mas quando transportada para a psicologia, diz respeito à adesão inflexível a sistemas teóricos, técnicas ou modelos explicativos que se tornam verdades inquestionáveis. Em outras palavras, a dogmática é o fechamento do pensamento.
Na formação acadêmica, a dogmática aparece quando a diversidade de abordagens é substituída pela imposição de uma única “escola” como superior, relegando outras linhas ao silêncio ou à desqualificação. No consultório, manifesta-se quando o profissional se apega tanto a uma técnica ou teoria que se torna incapaz de escutar o que está diante de si: um sujeito em sofrimento.
Autores como Thomas Kuhn (1962), ao falar sobre os paradigmas nas ciências, já alertavam para os riscos de sistemas fechados que não se abrem ao novo. Na psicologia, isso pode significar transformar a teoria em doutrina, e o consultório em um ritual burocrático.
Parte II – O campo vivo da prática psicológica
A prática, por sua vez, é um campo vivo, instável, atravessado por variáveis culturais, históricas, econômicas, institucionais e subjetivas. Ela não pode ser plenamente prevista por nenhum manual. Como ensina Kurt Lewin, um dos pais da psicologia social moderna, “nada é tão prático quanto uma boa teoria” – mas essa teoria deve ser boa exatamente por conseguir dialogar com a prática.
O psicólogo atuante sabe que a realidade não se dobra a categorias, que nem sempre os pacientes se encaixam em diagnósticos, e que nem todo sofrimento é patologizável. É nesse sentido que nomes como Ian Hacking (1995) problematizam os efeitos das “classificações” nas ciências humanas: à medida que rotulamos, transformamos as pessoas segundo essas etiquetas.
A prática é também lugar de escuta, de interdiálogo, de encontro. É onde a psicologia se realiza como cuidado com o outro e não como aplicação de uma técnica.
Parte III – Exemplos da tensão entre dogmática e prática
Vamos pensar alguns exemplos concretos dessa tensão:
1. Diagnóstico x Compreensão
Um psicólogo dogmático pode afirmar: “Este paciente tem Transtorno de Ansiedade Generalizada, então deve seguir este protocolo de 12 sessões”. Já um profissional prático e escutante pode se perguntar: “O que está por trás dessa ansiedade? Quais são os recursos e a história desse sujeito?”.
2. Teoria x Realidade Social
Em muitos contextos de vulnerabilidade, aplicar modelos baseados em realidades do norte global (Europa, EUA) sem adaptação às condições locais é uma forma de dogmatismo. Como afirma Mary Jane Spink (2003), é preciso “contextualizar a prática”, reconhecendo os atravessamentos sociais, raciais, econômicos e de gênero.
3. Rituais e burocracias x singularidade
A exigência de relatórios, prontuários ou aplicação de testes psicológicos pode ser transformada em prática dogmática quando a escrita e a mensuração substituem o vínculo. O compromisso com o paciente passa a ser substituído pelo compromisso com o documento.
Parte IV – Por que isso é um problema?
A psicologia não foi criada para defender teorias, mas para compreender e acolher sujeitos em sua singularidade. A dogmática rompe com essa missão, pois torna a teoria mais importante do que a pessoa atendida. O risco é tornar-se um técnico de manuais e não um profissional do cuidado.
Além disso, a dogmática afasta a psicologia de outros campos do saber e da atuação social. Em vez de dialogar com educadores, juristas, profissionais de saúde ou lideranças comunitárias, o psicólogo dogmático se isola em sua torre teórica, reafirmando seus postulados sem escutar a realidade.
Como afirma Edgar Morin (2000), é necessário desenvolver um pensamento complexo, que reconheça as incertezas e abraços paradoxos. A dogmática, ao contrário, tenta eliminar a complexidade.
Parte V – Caminhos para uma psicologia integrada, plural e responsiva
1. Formação plural e crítica
Os cursos de psicologia precisam apresentar diversas abordagens (humanistas, analíticas, cognitivo-comportamentais, sistêmicas, etc.) sem hierarquizá-las, e sobretudo, ensinar o aluno a pensar, a questionar, a sustentar uma escuta clínica.
2. Supervisão e intervisão como espaço de formação e não de julgamento
Mais do que “cobrar fidelidade teórica”, a supervisão deve ser um espaço de reflexão sobre a prática. Escutar o que não está no manual, abrir perguntas, cultivar a dúvida.
3. Pesquisa situada
Promover pesquisas qualitativas, etnográficas, estudos de caso, que nasçam de demandas reais e contribuam com intervenções possíveis. Abandonar a obsessão pela validade estatística sem aplicação prática.
4. Flexibilidade sem perda de rigor
Não se trata de abandonar a teoria, mas de usá-la como suporte, e não como grilhão. Como dizia Paulo Freire (1996), o rigor é necessário, mas deve ser dialógico.
5. Compromisso com a transformação social
Psicólogos atuantes reconhecem seu papel político, social e cultural. Não se escondem atrás da neutralidade, mas se implicam com as dores de seu tempo.
Parte VI – Conclusão: a psicologia que queremos construir
O futuro da psicologia depende da nossa capacidade de integrar teoria e prática, escuta e conhecimento, protocolo e acolhimento. Precisamos formar e nos formar como psicólogos pensantes, afetivos, éticos e responsivos.
Como nos lembra Winnicott (1969), “É na relação que o ser humano se torna real”. A psicologia também se torna real – e relevante – quando se permite tocar e ser tocada pela vida.
Uma psicologia dogmática forma repetidores. Uma psicologia prática e viva forma profissionais atuantes.
Que sejamos esses profissionais.