Estima-se que 70 milhões de pessoas no mundo tenham autismo, sendo 2 milhões delas no Brasil.
O autismo se caracteriza por diferentes graus de distúrbio de desenvolvimento, que se manifesta sobretudo na comunicação e na interação social. As causas ainda não são plenamente esclarecidas pela ciência e a intensidade dos sintomas varia bastante – o que muitas vezes faz casos distantes do estereótipo da síndrome demorarem a ser identificados.
Existe um subdiagnóstico do autismo especialmente entre mulheres, e a BBC conversou com sete britânicas que só descobriram ser parte do espectro autista quando já estavam na vida adulta.
Veja como a síndrome e a descoberta dela afetaram a vida dessas mulheres:
Maura, 50: ‘Parecia que todo mundo, menos eu, havia recebido um manual sobre como se comportar’
“Seis anos atrás, fui diagnosticada com síndrome de Asperger, uma forma de autismo. Como no caso de muitas mulheres, isso ocorreu após o diagnóstico do meu filho, Darragh. Se não fosse por isso, teria passado o resto da minha vida sem saber por que me sentia diferente.
Ainda criança, parecia que todo mundo menos eu havia recebido um manual sobre como se comportar ao redor de outras pessoas.
Me sentia mais confortável com os animais. Como eu me saía bem nos estudos e mascarava minha ansiedade, eu não chamava atenção – as pessoas achavam que eu era simplesmente tímida.
Quando meu autismo foi identificado, foi como se eu tivesse tirado do corpo um espartilho que eu sequer sabia estar usando.
Agora eu entendo que tenho um cérebro que processa informação sensorial e social de forma diferente em relação à maioria das pessoas.
Posso cuidar melhor de mim, gerenciando minha energia social e evitando o excesso de (estímulos) sensoriais. Encontrei um senso de identidade.
As mulheres não devem ter medo de serem diagnosticadas – pode ajudar a explicar tanta coisa. Quanto a vir a público com isso, é uma decisão pessoal, é claro.
Estou vivendo a vida que quero. Tenho uma carreira interessante e recompensadora como funcionária pública na Irlanda do Norte, com colegas que me aceitam como eu sou.
Escrevi um livro, com algumas das minhas irmãs autistas de todo o mundo, e muitas delas se tornaram amigas próximas.
O mais importante é que o diagnóstico enriqueceu minhas relações pessoais e fez de mim uma mãe mais confiante.
Darragh e eu temos um elo especial, e ele me deixa orgulhosa todos os dias.”
Hannah, 28: ‘Meninas aprendem a copiar os não autistas’
“Estou fazendo uma pesquisa de PhD sobre mulheres autistas que não são diagnosticadas. Mulheres e meninas comumente fazem um esforço natural de se encaixarem na sociedade, então seus sintomas não são estereotipadas como ‘autistas’.
Elas às vezes se sentem mais inclinadas a fazer amigos – então aprendem a copiar (a interação social) dos não-autistas.
Um exemplo é que muitas podem achar difícil fazer contato visual. Eu acho. Aprendi a desviar o olho por alguns segundos e daí olhar. Eu assistia às pessoas com cuidado e estudei psicologia ao ponto de conseguir agir naturalmente. Mas aprender esse repertório social demorou muitos, muitos anos.
Ao ser diagnosticada, consegui entender muitas coisas esporádicas que não funcionavam na minha vida.
Quando era mais jovem, imaginava situações e passava o dia inteiro dentro do meu próprio mundo.
Não conseguia brincar com as outras crianças. Eu era um fracasso em tentar acompanhar os jogos imaginários dos outros.
Na escola, sofri depressão e questões de saúde mental, e a partir dos 14 anos passei a ser escolarizada em casa.
Os médicos focaram na depressão, em vez de pensar em um possível diagnóstico de autismo. Em determinado momento, achei que pudesse ter transtorno de personalidade limítrofe. Foi bastante frustrante.
Achei que ir à universidade consertaria tudo. Fui estudar Psicologia. Fiz amigos, mas nunca frequentava as palestras.
O problema nunca foi acadêmico, mas sim a forma como eu encarava o aprendizado. Eu focava excessivamente em um projeto, durante dias, e precisava que os prazos de entrega fossem prolongados. É a mesma coisa agora com o meu PhD.
Tudo mudou quando comecei sessões com uma terapeuta artística para lidar com minha ansiedade. Ela sugeriu que eu poderia ter a síndrome de Asperger. Foi a partir disso que fui diagnosticada. Isso me deu alívio. Agora entendo que muitas mulheres e meninas passaram – e ainda passam – por exatamente a mesma coisa que eu.”
Jasmine, 26: ‘Estou cansada. Sei que tem algo errado comigo. Preciso descobrir o quê’
“Eu realmente pensava que eu era um alienígena. Eu não parecia ser como os outros humanos. Parece bobo, mas essa era a única coisa que meu cérebro infantil conseguia compreender.
Quando era bebê, as pessoas achavam que eu era surda. Mas não era – eu simplesmente não estava prestando atenção a elas.
Sofri muito bullying na escola. Acho que eu era um alvo fácil.
Foi muito desgastante. Durante as aulas, eu sempre sentia ter alguma dificuldade de aprendizado – algum tipo de bloqueio mental.
Quando os professores me faziam perguntas, meu cérebro desligava, precisava de um tempo extra para processar o que estavam me dizendo.
Só decidi que precisava de algum tipo de diagnóstico quando me formei em licenciatura. Pensei, ‘estou cansada. Sei que tem algo errado comigo. Preciso descobrir o quê.’
Fui diagnosticada aos 22 anos. Agora, a maioria dos meus amigos são do espectro autista. É mais fácil assim.
Entrei para um grupo artístico liderado por pessoas com questões de saúde mental. Eles davam workshops de comédia – e a partir disso acabei virando comediante.
Em meu stand-up, não me sinto tão estranha quanto quando estou conversando com as pessoas socialmente. É algo natural, (porque) não preciso conversar com ninguém especificamente nem ficar pensando, ‘será que é a minha vez de falar? Será grosseiro dizer tal coisa?’.”
Amanda, 40: ‘Comecei a me aceitar como sou’
“Para ser sincera, não tenho nenhum amigo. As pessoas que eu chamo de amigos são as que eu conheci no trabalho ou pelo Facebook. Mas não tenho ninguém com quem sair.
Não gosto que as pessoas venham a minha casa. É como meu santuário. Isso provavelmente soa meio estranho.
Meu marido é bastante sociável e se dá bem com todo mundo, então ele frequenta festas sem mim. Ele me conta quando vai ter uma festa, mas deixa para mim a decisão (de ir ou não). Não vou em 90% das vezes.
Ele costumava ficar chateado, mas agora ele entende que não é uma rejeição a ele. É que eu não consigo me colocar em uma situação em que me sentiria muito desconfortável.
Ambos os meus filhos são autistas. Minha filha foi diagnosticada aos 13 anos; meu filho, de 15, quando tinha quatro anos.
Eu li sobre a síndrome de Asperger e percebi que meu filho se encaixava nas características.
Ele ficava no carpete da escola olhando para o lado errado. As professoras achavam que ele não estava ouvindo, mas ele estava.
Com o tempo, comecei a me identificar muito com ele. Entendia muito seus pensamentos e comecei a me perguntar: ‘Será que eu também tenho Asperger?’
Meu ponto mais baixo foi quando comecei a interpretar as coisas equivocadamente na escola primária onde trabalhava e a cometer erros simplesmente porque não entendia as coisas. Foi quando decidi fazer uma avaliação de autismo e fui diagnosticada em 2012. Foi um alívio.
‘Não tem nada errado comigo, só sou autista’, pensei. É só a forma como o cérebro está ‘ligado’ e como ele vê o mundo.
Comecei a entender por que sofria tanto em interações sociais e não conseguia fazer amigos.
Comecei a me aceitar como sou – algo que não fazia até então.”
Claire, 35: ‘Agora, aceito melhor o porquê de eu fazer as coisas que faço’
“‘Não é possível que eu, psicóloga clínica, seja autista’, eu pensava. ‘É incompatível, porque autistas não têm empatia.’
Esse é o nível de ingenuidade que eu tinha antes. Caiu a ficha durante uma aula de psicologia em que estávamos aprendendo sobre diferentes síndromes, autismo incluído: ‘Nossa, parece muito comigo’.
Mas nem tudo fez sentido. Não aprendemos como o autismo se manifesta em mulheres, nem sobre a diversidade entre gêneros.
Acho que há um grande desejo das meninas de serem sociáveis, e o diagnóstico do autismo geralmente é baseado em traços masculinos.
Hoje, muitas das pessoas autistas que vêm a mim (no consultório psicológico) são traumatizadas, por serem forçadas a serem algo que não são.
Não vejo isso (o acompanhamento) como terapia, porque não há tratamento. Vejo como o desenvolvimento de habilidades para a vida.
E também desenvolver confiança.
Com minhas economias, comprei um terreno e coloquei patos, galinhas, cavalos e cabras ali. É onde trabalho com autistas. Nós passamos o tempo com os animais, que são como mediadores. Não é algo muito baseado em teoria, apenas experiência empírica que deu certo.
Fui diagnosticada aos 32 anos e isso mudou completamente a minha vida e a minha identidade para melhor.
Agora, aceito melhor o porquê de eu fazer as coisas que faço. E o autismo me oferece diversos dons e talentos.”
Anna, 27: ‘Acho muito difícil percorrer um salão e dizer oi para um monte de gente’
“Quando era adolescente, não conseguia entender o que estava errado comigo. Me sentia deslocada, e os professores me rotulavam como malcriada.
Chega um ponto em que você deixa de acreditar que deveria estar no mesmo planeta que as outras pessoas, porque você não entende ninguém e ninguém te entende. É como se você tivesse sido trazido por uma nave espacial.
Fui diagnosticada aos 22 anos, quando minha mãe começou a trabalhar em um centro de atendimento a autistas. Ela chegou em casa com um monte de livros e disse, ‘Quero que você os leia, porque acho que é isso que você tem’.
A princípio, meu médico me disse que eu tinha transtorno de personalidade limítrofe. E agregou, ‘é só depressão, só ansiedade. Tome estes remédios’.
Mesmo com o diagnóstico (de autismo), sentia que ninguém ao meu redor entendia ou queria entender.
Eu olhava para as pessoas que tinham bons empregos e carrões e pensava, ‘por que eu não consigo? Por que eu sempre fico doente e abandono os empregos?’
Tentei me forçar a trabalhar em período integral em um call center, mas não consegui. (Havia) luzes muito fortes e barulho – uma sobrecarga sensorial.
Hoje, trabalho com pessoas com deficiências de aprendizagem.
Meu parceiro é barbeiro e conhece muita gente. Tem muitos amigos e clientes e toca em uma banda. Houve ocasiões sociais em que entrei em pânico e precisei voltar para casa. Acho muito difícil percorrer um salão e dizer oi para um monte de gente.
Mas agora ele sempre me diz antes o que vai acontecer, quem vai estar lá (no evento social) e o horário em que vai começar e terminar, para que eu possa me preparar mentalmente.
Eu até tenho alguns amigos, mas à medida que fui crescendo perdi o interesse em fazer novos amigos. Na escola, não sentia conexão com as pessoas, mas sim com as bandas às quais escutava – elas eram as minhas amigas. Sei que parece estranho. É que a música esteve comigo o tempo todo, enquanto as pessoas vêm e vão.”
Sophie, 23: ‘Ter um rótulo traz tanto benefícios quanto aspectos negativos’
“Fui diagnosticada há pouco mais de um ano, mas foi ainda no ensino médio que pela primeira vez achei que pudesse ser autista.
Meu irmão foi diagnosticado com autismo quando tinha cinco anos e ia a uma escola especializada. Eu via um pouco do comportamento dele em mim, o que me fazia pensar.
Acho que, em alguns casos, as mulheres aprendem a copiar comportamentos para conseguir viver, e é provavelmente por isso que elas não são diagnosticadas tão cedo.
Me formei em licenciatura na Universidade de Derby. Atualmente faço mestrado em inclusão e necessidades especiais e deficiência em educação.
Na universidade, meus professores disseram ter percebido coisas similares, então fui atrás de um diagnóstico. Senti que ele explicou muito (sobre mim), o que foi bom.
No entanto, sinto que ter um rótulo traz tanto benefícios quanto aspectos negativos.
Meu autismo afeta principalmente minha sociabilidade e expressão, e eu também tenho altos níveis de ansiedade, sobretudo quando há mudanças na minha rotina.
Tenho tendência a ficar obsessiva quanto a coisas como programas de TV. Chego a assistir por horas e decoro o roteiro. Também tenho que planejar o que vou dizer e não gosto de ser interrompida.
Vou e volto de táxi à universidade, porque o transporte público me deixa ansiosa.
Hoje, tenho uma mentoria especializada para me ajudar com dificuldades e para treinar minhas habilidades sociais.
Me senti bem quando contei aos meus colegas de mestrado que sou autista. São apenas cinco pessoas, então me senti à vontade para explicar. Não teria contado a uma classe grande, como os cerca de 80 que eram da minha sala na graduação.”
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43549847