Série Adolescência – O chamado silencioso da dor transgeracional

  • post publicado em 28/04/25 às 14:41 PM
  • Tempo estimado de leitura: 3 minutos

 

O chamado silencioso da dor transgeracional

Utilizo com frequência a arte como recurso terapêutico nas sessões clínicas. Filmes, livros e séries não apenas ampliam minha escuta profissional — também fazem parte da minha jornada extra clínica, como formas de entretenimento que, volta e meia, despertam insights que ampliam minha consciência sobre a vida humana.

Quero estender esse olhar aqui, na página do Instituto Suassuna, onde fiz minha primeira Especialização em Neurociência e Avaliação Psicológica e atualmente faço a Especialização em Terapia Cognitivo Comportamental. A convite do Danilo Suassuna, tenho abertura para expressar nessa página, reflexões mais amplas sobre o desenvolvimento humano e os dramas que nos constituem. Sendo assim, considere comigo: Toda expressão artística nos convida a olhar para fora de nós mesmos. Vamos lá?

Há algumas semanas, resolvi assistir à polêmica série que está em 1º lugar na Netflix. Talvez ela também tenha chamado sua atenção. Afinal, por que uma série com o título traduzido como Adolescência, cujos atores e criadores são pouco conhecidos, estava causando tanto frisson?

Ao assistir, percebi algo que foi além do roteiro ou das atuações. Philip Barantini, autor da série, assim como todos os envolvidos na produção, assumiram o compromisso de revelar artisticamente várias camadas dos dramas humanos ali apresentados.

Talvez você tenha assistido e simplesmente gostado. Talvez não tenha gostado, ou até mesmo não tenha entendido muito bem o porquê do desconforto que ela provoca. Assim como a releitura de um livro revela novas camadas da história, rever uma série pode ser uma experiência profunda. Apesar de não ser uma série onde reconhecemos esmero cinematográfico, existe no enredo dramático um cuidado em desnudar aos olhos distraídos das pessoas de hoje, a pulsação da alma de cada personagem: a alienação da mãe — desconectada do feminino para suportar uma realidade insuportável —, e a agressividade passiva do pai — inseguro, ansioso, deslocado do masculino. Ambos reprodutores e mantenedores de um palco caótico de emoções e comportamentos contraditórios. Enquanto isso, os filhos desenvolvem subterfúgios de resistência: a filha mergulha na depressão e na ansiedade; o filho se perde entre a ansiedade e a agressividade.

Há uma dor que atravessa gerações. Ela não grita, mas molda gestos, afetos e escolhas. Ela se esconde atrás de sorrisos mecânicos, rotinas apressadas e falas automáticas como “está tudo bem”. Essa dor se instala em famílias onde os vínculos estão fragilizados, onde cada um sobrevive ao seu modo — e ninguém realmente vê o outro.

Essa série escancara, com coragem, aquilo que nós, enquanto clínicos, vemos com frequência crescente: a transgeracionalidade da dor emocional. Pais que não receberam cuidado afetivo e que, sem perceber, perpetuam ausências, frieza, invalidação ou negligência com seus próprios filhos.

A adolescência, por definição, é um tempo de reorganização interna e relacional. Quando esse jovem se depara com adultos emocionalmente imaturos, desorganizados ou simplesmente ausentes, ele se protege como pode. Às vezes, se rebela. Outras, adoece. Em alguns casos, agride. Mas, no fundo, tudo o que deseja é ser visto.

É preciso dizer com clareza: filhos não precisam de pais perfeitos. Precisam de pais presentes, emocionalmente disponíveis. Precisam de adultos que aceitem revisar suas próprias histórias, que reconheçam as marcas da infância e se comprometam com um caminho de elaboração e cuidado.

Na Bioiatria — uma das abordagens terapêuticas que utilizo com meus pacientes —, a arte tem um papel precioso: ela nos convida a despertar para realidades adormecidas que, inconscientemente, escolhemos ocultar. E essa série faz exatamente isso. Nos confronta. Nos chama.

Mais do que apenas retratar misoginia, a série revela o núcleo das neuroses que sustentam comportamentos misóginos e sexistas. Expõe as estruturas psíquicas fundantes de cada personagem, suas crenças, medos e anseios — como se nos dissesse que, antes de julgarmos, é preciso compreender.

E essa é a beleza da arte: ela não entrega respostas prontas. Ela cutuca. Em alguma medida, pais e mães atentos ao convívio familiar podem se reconhecer em algumas cenas. Isso exige coragem, mas também é o primeiro passo para uma transformação real.

Como neuropsicóloga e terapeuta integrativa, defendo que o maior gesto de amor de um pai ou de uma mãe é cuidar da própria saúde emocional. Tratar as feridas da infância, reconhecer padrões familiares repetitivos, elaborar lutos antigos — isso não é um luxo terapêutico, é uma urgência existencial.

Séries e filmes podem nos entreter, sim. Mas, às vezes, nos convocam. E essa é uma dessas vezes.

O chamado está lançado:

Que tipo de pais estamos sendo?

Que tipo de filhos fomos?

E o que, entre uma geração e outra, temos coragem de transformar?

Daniela Pissardo.  Psicóloga Clínica CRP 09/21185 e Terapeuta Integrativa – Homeopata. Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental; Neurociência e Avaliação Psicológica. 

Docente em Cursos de Pós Graduação e coautora nos livros: “Psicologia Clínica e Prática em Saúde” e “ Neurociência e Neuropsicologia no Cerrado: Explorando o Cérebro no Coração do Brasil”.

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

Acesse o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8022252527245527