Seria o luto uma contraindicação à Reprodução Assistida?

  • post publicado em 17/04/21 às 16:09 PM
  • Tempo estimado de leitura: 5 minutos

 

Trabalhando há mais de 27 anos em Psico-oncologia pediátrica, sempre estudei muito sobre as mais diversas formas de integração do luto pela perda de um filho. Sendo assim, ao iniciar meus atendimentos sistemáticos na clínica de Reprodução Humana Assistida, não deixei de questionar: Onde ficariam os lutos das diversas tentativas, dos abortos de repetição e da própria infertilidade do casal?

Buscando arcabouços teóricos, li publicações que chegavam a falar da necessidade de escuta qualificada para o luto da infertilidade. Ressalto entre tantos, o artigo de duas psiquiatras, denominado Infertility and Perinatal Loss: When the Bough Breaks, que nomeiam claramente a infertilidade e a perda perinatal, conhecidas em conjunto como um trauma reprodutivo, como eventos que podem mudar a percepção que a mulher tem de si mesma e ser uma importante fonte de estresse que geralmente tem consequências psicológicas (Bhat, Byatt, 2016).

O trauma reprodutivo ocorre em até 15% das mulheres e geralmente está associado a sintomas ou distúrbios psiquiátricos. Não apenas o trauma reprodutivo pode levar ao luto, depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (PTSD), mas, esses próprios sintomas psiquiátricos também foram associados à infertilidade e ao aborto espontâneo.

Mas anteriormente a toda esta pesquisa sobre artigos sobre infertilidade, eu havia também investigado por fatores que pudessem contraindicar um tratamento de fertilização. Encontrei dentro das indicações fornecidas pela American Society for Reproductive Medicine (ASRM), critérios de postergação ou de exclusão do tratamento de fertilização também aparentemente baseados em vivências de luto, mas estando assim identificados: “Perdas não resolvidas ou de recente iniciação” (Fernandez, 2009). O que seriam perdas não resolvidas?

Em uma pesquisa realizada Pelo American Journal of Obstetrics & Gynecology em um artigo de 13 de dezembro de 2019, que teve como objetivo investigar os níveis de estresse pós-traumático, depressão e ansiedade em mulheres nos 9 meses após a perda precoce da gravidez, com foco no aborto espontâneo e na gravidez ectópica, cuja a morbidade em 1 mês foi comparada com um grupo controle na gravidez saudável, concluiu-se que as mulheres apresentam altos níveis de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão após a perda precoce da gravidez. A angústia diminui com o tempo, mas permanece em níveis clinicamente importantes em 9 meses (Farren J, Jalmbrant M, Falconieri N, et al. ,2020). Estariam aqui caracterizadas as perdas não resolvidas? Será que o bebê biotecnologicamente produzido produziria um distanciamento maior e protegeria as figuras parentais deste sentimento de perda?

Aparentemente não. Falas recortadas da escuta clínica confirmaram algum sentimento de espera e angústia: “ Imagino a cara do meu filho”; “Nesse mundo de Deus não se vive sozinho”; “Já visualizava minha filha esperando para vir ao mundo”, “Ele não está vindo…” (referindo-se ao filho).

Mas também houveram falas opostas, constatando que os abortos não foram muito sofridos e não ficaram muitas sequelas pelo fato de não haver desenvolvido nenhum laço afetivo com o embrião, encarando a perda como um sangramento comum.

Kenneth J.Doka (1989,2002) traz o conceito de que luto não-reconhecido parte do princípio de que qualquer sociedade tem um conjunto de normas ou ainda “regras de luto” que estão a serviço de especificar quem, quando, onde, como, por quanto tempo e por quem devemos expressar sentimentos de luto ou pesar. Conforme o autor citado, isto pode acontecer em nossa sociedade quando:

  • O relacionamento não é reconhecido porque a relação não é baseada em laços afetivos, como no caso do laço do embrião com o casal, ou no diagnóstico de infertilidade em que a perda ocorre antes mesmo da criança ser concebida;
  • Quando a perda não é reconhecida, pois socialmente não é considerada significativa pois não ocorreu a existência física do objeto da perda;
  • Quando a morte não é reconhecida pois representa uma das situações rechaçadas pela sociedade que resiste em enquadrar perdas gestacionais nas regras do luto e, o modo de enlutar-se dos pais, muitas vezes extremamente contido, não são validados socialmente justamente pelo seu estilo de expressão do pesar. Normalmente se esperaria que pais chorassem mais pelo filho perdido e o luto de casais tentantes acaba sendo extremamente silencioso e “engarrafado”.

Sendo assim, a temática luto em reprodução assistida se divide em várias e possíveis vertentes:

  • O luto pela infertilidade; como um luto não reconhecido.
  • O luto pelas tentativas frustradas sem uma gestação instalada – luto pela expectativa do dar certo;
  • Luto pelas perdas repetidas de implantação;
  • Luto pelas gestações iniciais, com um investimento já vincular ao embrião;
  • Perdas por gestações já avançadas;
  • Perdas de um embrião na gestação gemelar.

Estas são perdas que envolvem o próprio corpo da mulher e o investimento do casal. Mas concomitante a isto tudo, sempre tive uma atenção maior àqueles casais que estavam passando por perdas de figuras significativas recentemente e lidavam concomitantemente com um processo de fertilização. Após investigação e caso concordassem alertava da possibilidade de postergarem o processo ou então do casal se dispor a ser ouvido com mais frequência no intuito de integrar melhor o luto, que simbolizava de certa forma o fechamento de um ciclo, junto com a fertilização que marcava o início de outro.

Diante da era COVID, temos luto por perdas de figuras parentais, sem a devida possibilidade de honrar a morte dos mesmos. Então além de lidarem com a passagem da espera da roda vida, são marcados pelas despedidas que não aconteceram. Sendo assim, temos que estar mais atentos aos processos de finitude ocorridos na família para que este luto não se estenda durante a gestação e agrave quadros de depressão pós-parto.

De que forma a escuta psicológica poderá auxiliar nestas vivencias de luto, para que não se caracterizem como uma contraindicação?

Hoje se tem claramente o conceito de que luto não se supera, mas sim se integra à vida. Esta integração, no entanto, ocorre a partir de alguns fatores, dentre eles a possibilidade de construção de novas narrativas. Neimeyer (2011), um dos pesquisadores contemporâneos sobre o luto, ressaltou o quanto o luto, na forma de perda através da morte de uma figura com quem se tinha vínculo significativo, interrompe as auto narrativas dos
sobreviventes e, geralmente, os coloca em uma busca involuntária pelo sentido da perda bem como de suas vidas alteradas.

O desejo de um filho é uma narrativa continuamente em construção. Quando alguém da equipe pergunta sobre a história de perdas e acolhe e dá significado a elas, estaremos ajudando nesta ressignificação e no ajustamento a vida.

Neste sentido, a negação do que aconteceu, congela a pessoa e pode conduzi-la a um luto complicado, potencializando os riscos de ser um luto traumático, pela rapidez com que ocorre; pela incerteza da materialidade (no caso de abortos de repetição muito precoces); pela impotência diante da perda, que pelo fato de não ser partilhada pode levar a um transbordamento psíquico, justamente pela falta de representação e reconhecimento social – um excesso.

Casais inférteis muitas vezes tem seu apoio social prejudicado. Por isto é tão
importante estimulá-los a elegerem pelo menos um membro da família como aquele que também terá conhecimento do processo de fertilização; acolher as perdas anteriores como reais, mesmo que sejam “apenas” embriões, pois sabemos que estes embriões vêm cheios de fantasias parentais. Ao mesmo tempo, sugerir sempre que necessário a realização de
pequenos rituais particulares do casal que possibilitem uma ressignificação das tentativas mal sucedidas. Propor a postergação do processo de transferência, caso o casal esteja vivenciando um luto familiar muito próximo, de um ente querido muito significativo e caso seja possível dar um intervalo de três meses entre cada tentativa. Existe um silêncio que precisa ser marcado.

Que essa dor possa ter o silêncio necessário para conseguir retornar ao
movimento. Que possa ser “silenciosa, mas não silenciada”, pois um corpo traz muitas histórias e elas precisam ser narradas.

Fontes de Pesquisa:

Bhat, A., & Byatt, N. (2016). Infertilidade e perda perinatal: quando o ramo se rompe. Relatórios atuais de psiquiatria, 18 (3), 31. https://doi.org/10.1007/s11920-016-
0663-8

Farren J, Jalmbrant M, Falconieri N, et al. Estresse pós-traumático, ansiedade e depressão após aborto espontâneo e gravidez ectópica: um estudo multicêntrico, prospectivo, de coorte. Am J Obstet Gynecol 2020; 222: 367.e1-22.

Fernandez, Dario. (2009) Módulo de Counseling para tratamentos de reprodução assistida de alta complexidade. In: Melamed, M. R., Seger, L., Borges Jr e cols. Psicologia e Reprodução Humana Assistida. Livraria Santos Editora.

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Patrícia Marinho Gramacho / CRP 09/1125.
Psicóloga e PsicanalistaPsico-oncologista (Experiência em psico-oncologia pediátrica) e vasta experiência a grupo de enlutados.
Mestre em Letras, Literatura e Crítica Literária
Capacitação em Reprodução Humana Assistida pela SBRA
Siga a autora no Instagram: @patgramacho

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Pós doutorando em Educação, Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela PUC-GO. Especialista em Gestalt-terapia pelo ITGT – GO. Foi professor da PUC-GO e do ITGT-GO entre os anos de 2006 e 2011.

É CEO, membro fundador e professor do Instituto Suassuna (IS-GO) e membro do Conselho Consultivo da Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies (RAG), além de consultor Ad – hoc da Revista em Psicologia em Revista (PUC-Minas).

É autor dos livros: – Histórias da Gestalt – terapia no Brasil – Um estudo historiográfico – Organizador do livro Renadi: a experiência do plantar em Goiânia – Organizador do livro Supervisão em Gestalt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia.