Acho que jamais conseguirei usar em paz o ditado “a ignorância é uma benção” depois de assistir à série Ruptura (Severance, de 2022, disponível na Apple TV+). Nela, trabalhadores de uma grande corporação chamada Lumon submetem-se voluntariamente ao procedimento de “ruptura”, através do qual “a cronologia perceptiva é dividida cirurgicamente, separando as memórias do trabalho das memórias da vida pessoal”. Somos inseridos nessa distopia corporativa através de Helly R., a mais nova funcionária da Lumon que acorda em cima de uma mesa de sala de reuniões sem qualquer memória ou conhecimento de quem é. Protestando obstinadamente àquele absurdo, Helly R. é levada a uma outra sala onde assiste um vídeo de si mesma (sua versão consciente) explicando que consentiu com o procedimento de ruptura e que está ciente de que “o acesso às suas memórias será espacialmente ditado”. Ou seja: enquanto dentro da Lumon, Helly R. é uma espécie de “tábula rasa”, sem nenhuma consciência de qualquer aspecto de sua vida pregressa; uma vez fora da Lumon, Helly R. retornará à consciência de sua identidade e realidade pessoais, mas não se recordará de absolutamente nada acerca do que lhe acontece no trabalho. O paradoxo é que, por mais que sua “outie” (sua versão do lado de fora) tenha escolhido voluntariamente o que para muitos é algo ultrajante, sua “innie” (a Helly R. do lado de dentro) está absolutamente inconformada – e sua revolta e angústia só é agravada com o fato de que para todos os outros funcionários (inclusive seu chefe de departamento Mark S.), viver como versões alternativas de si mesmos sem qualquer autonomia sobre a própria existência soa perfeitamente normal. Sinto que já poderia terminar esta resenha aqui. Qualquer semelhança com nossa realidade NÃO É mera coincidência! Vou tentar compartilhar um pouco da minha experiência com “Ruptura”, com a qual não consigo romper nem um pouco desde que assisti. “Ruptura” obriga o espectador a aguentar e compreender a ignorância escolhida por seus personagens antes de perceberem que só fortaleceram as grades de suas prisões. Isso é feito principalmente ao acompanharmos Mark S., protagonista da série. Ao mesmo tempo em que se mostra um funcionário satisfeito, obediente e que não questiona em nada o status quo (ainda que não tenha o mesmo fervor religioso pela empresa que seu colega Irving), Mark passa pela vida fora da empresa como quem apenas precisa suportá-la até o próximo expediente. Sabemos que ele convive com uma perda muito trágica em sua vida e que aceitar o procedimento de ruptura significa para ele passar oito horas por dia sem ter de lidar com tal perda. Porém, Mark e seus colegas não fazem ideia da natureza de seu trabalho na Lumon e tampouco sabem das barbaridades engendradas para mantê-los ali em total cumplicidade e ignorância. Quanto mais entendemos que Mark S. e seus colegas trocaram um inferno por outro sem terem consciência disso, mais nos comprometemos em acompanhar a série até o fim na esperança de que nossos protagonistas se libertem de suas ilusões e das injustiças que sofrem nas mãos de seus chefes/algozes. Esta dinâmica nos conduz em fervura lenta até o quinto episódio, quando as coisas dão uma guinada exponencial até chegar a um final de temporada extremamente recompensador – ainda que torturante! É notável também como tudo na série é tremendamente bem executado. Além de roteiro, direção e atuações fenomenais, o design de produção dos estreitos corredores corporativos e das salas assustadoramente desprovidas de cor e vida orgânica comunicam perfeitamente que a repetição e a rotina acachapante de um trabalho sem sentido é talvez a forma mais conhecida de inferno. Já no sentido filosófico, a série tem me despertado duas reflexões. Primeiro: ignorar fatos e experiências da vida faz parte de nossa saúde psicológica em momentos em que não podemos lidar com certos aspectos de nossa realidade. Quando, porém, a ignorância se torna automática e crônica, tornamo-nos menos capazes de encarar essa mesma realidade e, por fim, tornamo-nos menos de quem somos. Os constantes esforços necessários para manter certas partes de nossa vida domadas ou “adormecidas” distorce nossa percepção da realidade e até nos leva a romper com necessidades importantes que, uma vez não supridas, só podem resultar em desespero existencial. Isso me leva à segunda reflexão: o que nos faz abrir mão da verdade sobre nós mesmos quando ela se faz insuportavelmente dolorosa? A desespiritualização da vida. Quando a vida mundana é desprovida de seu caráter transcendente – de nossa capacidade de existir para um propósito que não pode ser apagado até pelas piores circunstâncias -, entramos na esfera do desespero existencial. Este advém da noção de que não haverá fim ou saída para o sofrimento, fomentando atitudes temerárias diante do mesmo. O procedimento de ruptura dentro da série existe, por um lado, para socorrer a descrença do ser humano nos próprios recursos para lidar com as vicissitudes da vida; por outro lado, representa a outra face da desespiritualização da vida: o afã destrutivo da ciência em “aprimorar” a vida humana destituindo-a do que é humano. Se o remédio para o desespero existencial é romper com o que é indelevelmente humano, isso só mostra o mal que é viver uma vida no mundo sem fé. Fé, primeiro, na possibilidade de crescer com o sofrimento, de tornar-se mais daquilo que se é diante das pressões do meio. Felizmente, “Ruptura” comprova que até um meio sem pressões torna-se em si mesmo uma grande pressão para o crescer. Isso porque existir sem a consciência da dor e da angústia é existir sem a consciência da própria liberdade possível. E isso é intolerável ao espírito humano. Pois se há desespero onde há somente dor, não pode haver esperança para o potencial humano se não há dor alguma.
Pedro Paulo Coelho (@pedropaulocoelhoo)
Psicólogo, Gestalt-terapeuta, palestrante e gago incurável.