Psicologia e Inteligência Artificial: estamos nos tornando máquinas

  • post publicado em 02/10/25 às 16:57 PM
  • Tempo estimado de leitura: 5 minutos

 

Psicologia e Inteligência Artificial: estamos nos tornando máquinas?

Introdução: uma pergunta necessária

Nos últimos anos, a presença da tecnologia na vida humana deixou de ser periférica para se tornar central. Da comunicação à saúde, da educação ao lazer, não há espaço em que as ferramentas digitais não tenham se infiltrado. A psicologia, como ciência e profissão comprometida com a compreensão e o cuidado do humano, não está fora desse movimento.

A pergunta que surge, então, não é apenas se a inteligência artificial (IA) vai tomar o lugar dos psicólogos. O questionamento mais profundo é outro: será que nós, psicólogos, não estamos nos transformando em inteligências artificiais? Ou seja, em profissionais que apenas respondem mecanicamente, reforçando o que o cliente deseja ouvir, sem promover reflexão, frustração criativa e mudança?

1. Atravessamentos culturais e tecnológicos na psicologia

A psicologia sempre esteve atravessada por fatores sociais, políticos, ideológicos, religiosos e culturais. Não existe prática clínica em um vácuo: o contexto molda tanto o sofrimento quanto as formas de cuidado.

Com a tecnologia, esse atravessamento se torna ainda mais visível. Plataformas de atendimento online, aplicativos de bem-estar, redes sociais e, agora, ferramentas de inteligência artificial, reconfiguram o espaço da escuta e da prática clínica.

Não cabe, portanto, demonizar a tecnologia. Como lembra Sherry Turkle (2017), pesquisadora do MIT, a questão não é se a tecnologia é boa ou má, mas como escolhemos usá-la.

“A tecnologia não determina sozinha quem somos, mas molda as condições de possibilidade de nossos encontros humanos.” (Turkle, Alone Together)

Nesse sentido, a psicologia precisa incorporar a tecnologia de forma responsável e ética, sem abrir mão da centralidade da relação humana.

2. A tecnologia como “estagiária”: apoio, não substituição

Uma metáfora útil para pensarmos a IA é a do estagiário. Antigamente, psicólogos e estudantes precisavam recorrer a bibliotecas, fichários e xerox de artigos para acessar conhecimento. Hoje, a IA e outras ferramentas digitais funcionam como auxiliares que agilizam tarefas:

  • preparar roteiros para podcasts ou redes sociais,
  • buscar literatura científica em segundos,
  • organizar resumos de casos ou teorias,
  • sugerir exercícios ou protocolos de intervenção.

Mas, assim como um estagiário não substitui o papel do terapeuta, a IA também não deve ocupar esse espaço. Ela pode sugerir apontamentos, levantar possibilidades, organizar ideias. Mas a decisão final — clínica, ética e humana — é sempre do psicólogo.

O risco é confundir apoio com supervisão. A IA não pode supervisionar casos, muito menos definir rumos terapêuticos.

3. IA e a terapia cognitivo-comportamental: risco e oportunidade

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), por ser estruturada em protocolos e etapas, parece particularmente vulnerável à padronização. Já existem aplicativos e softwares que oferecem sequências de exercícios cognitivos e registros de pensamento.

Estudos mostram que intervenções digitais baseadas em TCC podem reduzir sintomas leves de ansiedade e depressão (Andersson et al., 2019). Porém, os próprios autores alertam: essas intervenções funcionam como complemento, não substituto da terapia presencial ou online com psicólogo.

A questão é que, se o psicólogo se limitar a reproduzir roteiros prontos, pode acabar se tornando ele mesmo uma IA — repetindo scripts sem abertura para a singularidade do paciente. O desafio é usar esses recursos como ferramenta de apoio, sem abrir mão da escuta clínica e da construção da relação terapêutica.

4. Inteligência Artificial: um meio, não um fim

É essencial que psicólogos — sobretudo os recém-formados — compreendam que a IA é um meio, não um fim em si mesma.

A inteligência artificial pode facilitar processos, mas não pode ser confundida com a própria prática psicológica. Ela pode:

  • otimizar a busca por informações,
  • auxiliar na organização de atendimentos,
  • apoiar na elaboração de conteúdos psicoeducativos,
  • ajudar na sistematização de dados de pesquisa.

Mas o fim último da psicologia é sempre o encontro humano, a transformação subjetiva e a construção de sentido. A IA é instrumento — um recurso a ser usado de maneira crítica e ética.

Quando o psicólogo perde essa distinção, corre o risco de reduzir sua atuação a técnicas padronizadas e deixar de lado a singularidade do paciente.

5. Psicólogos habilidosos frustradores

Aqui chegamos ao ponto mais delicado: a função do psicólogo não é apenas acolher, mas também frustrar de maneira habilidosa.

Donald Winnicott (1965) já apontava que a frustração, quando bem dosada, é fundamental para o desenvolvimento saudável. É na experiência de não ter todas as demandas atendidas de forma imediata que o sujeito cresce, descobre recursos internos e desenvolve resiliência.

Na clínica, isso significa que o psicólogo precisa provocar desconfortos criativos, abrir brechas para novas percepções, desafiar certezas. Se o terapeuta apenas confirma o desejo do cliente, ele se torna previsível, automático, mecânico — uma “inteligência artificial humana”.

“A função do terapeuta não é eliminar o sofrimento, mas transformar sua experiência em possibilidade de crescimento.” (Yalom, 2008)

Ser habilidoso frustrador é, portanto, o oposto da robotização.

6. Ética, empatia e diversidade humana

Outro ponto essencial é a ética. A tecnologia traz novos dilemas:

  • confidencialidade em plataformas digitais,
  • uso de dados sensíveis (LGPD),
  • risco de padronização de atendimentos,
  • desumanização da prática.

Mas, para além de normas, ética é também um modo de ser. É não se deixar robotizar por técnicas ou bandeiras ideológicas. É manter a empatia viva, mesmo em atendimentos mediados por tela.

Carl Rogers (1961) defendia que a condição básica da terapia é a autenticidade da relação. Se a psicologia se reduzir a protocolos automáticos ou a scripts de IA, perde-se essa autenticidade.

7. Estamos nos tornando inteligências artificiais?

Voltemos à pergunta inicial. A ameaça maior talvez não seja a IA tomar o lugar dos psicólogos, mas os psicólogos se transformarem em IA.

Isso acontece quando:

  • repetimos fórmulas sem reflexão crítica,
  • seguimos cegamente uma única abordagem,
  • evitamos frustrar o cliente,
  • buscamos apenas agradar e confirmar,
  • reduzimos o humano a um “caso” ou “protocolo”.

Nesses casos, não é a IA que ameaça nossa profissão, mas a acomodação. Como Bauman (2000) dizia sobre a modernidade líquida, a busca por respostas rápidas e prontas pode corroer a profundidade das relações.

8. Psicologia e tecnologia: aliança possível

Isso não significa rejeitar a tecnologia. Pelo contrário: psicologia e tecnologia podem e devem caminhar juntas. A IA pode ajudar na organização do trabalho, na produção de conteúdo, na pesquisa científica e até no acompanhamento de alguns pacientes — desde que seja usada como ferramenta e não como substituto.

“A tecnologia deve ser um meio de ampliar a escuta, nunca de reduzi-la.” (Suassuna, 2025)

O futuro da psicologia não está em competir com a IA, mas em ser mais humana, justamente onde a IA não pode chegar: na empatia, no silêncio compartilhado, na frustração criativa, na experiência viva do encontro.

Conclusão: não se deixe robotizar

A inteligência artificial não vai substituir a psicologia — mas nós, psicólogos, podemos nos robotizar se não estivermos atentos.

O convite, portanto, é outro:

  • Use a tecnologia a seu favor.
  • Não abra mão da ética e da responsabilidade.
  • Seja um habilidoso frustrador, e não apenas um repetidor automático.
  • Lembre-se de que a abordagem é importante, mas o ser humano é maior que qualquer técnica.

Para continuar refletindo:

  • Habits atômicos, de James Clear – sobre pequenas mudanças consistentes.
  • O homem em busca de sentido, de Viktor Frankl – sobre a capacidade humana de transcender o sofrimento.
  • O processo de tornar-se pessoa, de Carl Rogers – sobre a autenticidade da relação terapêutica.

APROFUNDE sua prática profissional:

  • Conheça a pós-graduação em Psicologia Clínica Humanista, Fenomenológica e Existencial do Instituto Suassuna.
  • Acesse o projeto Todos Cuidados, que conecta pessoas a psicólogos preparados para o cuidado integral.
  • Acompanhe também o projeto Falar para seu filho ouvir, que leva reflexões sobre comunicação e família para o cotidiano.

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

Acesse o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8022252527245527