

Psicologia e Inteligência Artificial: estamos nos tornando máquinas?
Introdução: uma pergunta necessária
Nos últimos anos, a presença da tecnologia na vida humana deixou de ser periférica para se tornar central. Da comunicação à saúde, da educação ao lazer, não há espaço em que as ferramentas digitais não tenham se infiltrado. A psicologia, como ciência e profissão comprometida com a compreensão e o cuidado do humano, não está fora desse movimento.
A pergunta que surge, então, não é apenas se a inteligência artificial (IA) vai tomar o lugar dos psicólogos. O questionamento mais profundo é outro: será que nós, psicólogos, não estamos nos transformando em inteligências artificiais? Ou seja, em profissionais que apenas respondem mecanicamente, reforçando o que o cliente deseja ouvir, sem promover reflexão, frustração criativa e mudança?
1. Atravessamentos culturais e tecnológicos na psicologia
A psicologia sempre esteve atravessada por fatores sociais, políticos, ideológicos, religiosos e culturais. Não existe prática clínica em um vácuo: o contexto molda tanto o sofrimento quanto as formas de cuidado.
Com a tecnologia, esse atravessamento se torna ainda mais visível. Plataformas de atendimento online, aplicativos de bem-estar, redes sociais e, agora, ferramentas de inteligência artificial, reconfiguram o espaço da escuta e da prática clínica.
Não cabe, portanto, demonizar a tecnologia. Como lembra Sherry Turkle (2017), pesquisadora do MIT, a questão não é se a tecnologia é boa ou má, mas como escolhemos usá-la.
“A tecnologia não determina sozinha quem somos, mas molda as condições de possibilidade de nossos encontros humanos.” (Turkle, Alone Together)
Nesse sentido, a psicologia precisa incorporar a tecnologia de forma responsável e ética, sem abrir mão da centralidade da relação humana.
2. A tecnologia como “estagiária”: apoio, não substituição
Uma metáfora útil para pensarmos a IA é a do estagiário. Antigamente, psicólogos e estudantes precisavam recorrer a bibliotecas, fichários e xerox de artigos para acessar conhecimento. Hoje, a IA e outras ferramentas digitais funcionam como auxiliares que agilizam tarefas:
- preparar roteiros para podcasts ou redes sociais,
- buscar literatura científica em segundos,
- organizar resumos de casos ou teorias,
- sugerir exercícios ou protocolos de intervenção.
Mas, assim como um estagiário não substitui o papel do terapeuta, a IA também não deve ocupar esse espaço. Ela pode sugerir apontamentos, levantar possibilidades, organizar ideias. Mas a decisão final — clínica, ética e humana — é sempre do psicólogo.
O risco é confundir apoio com supervisão. A IA não pode supervisionar casos, muito menos definir rumos terapêuticos.
3. IA e a terapia cognitivo-comportamental: risco e oportunidade
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), por ser estruturada em protocolos e etapas, parece particularmente vulnerável à padronização. Já existem aplicativos e softwares que oferecem sequências de exercícios cognitivos e registros de pensamento.
Estudos mostram que intervenções digitais baseadas em TCC podem reduzir sintomas leves de ansiedade e depressão (Andersson et al., 2019). Porém, os próprios autores alertam: essas intervenções funcionam como complemento, não substituto da terapia presencial ou online com psicólogo.
A questão é que, se o psicólogo se limitar a reproduzir roteiros prontos, pode acabar se tornando ele mesmo uma IA — repetindo scripts sem abertura para a singularidade do paciente. O desafio é usar esses recursos como ferramenta de apoio, sem abrir mão da escuta clínica e da construção da relação terapêutica.
4. Inteligência Artificial: um meio, não um fim
É essencial que psicólogos — sobretudo os recém-formados — compreendam que a IA é um meio, não um fim em si mesma.
A inteligência artificial pode facilitar processos, mas não pode ser confundida com a própria prática psicológica. Ela pode:
- otimizar a busca por informações,
- auxiliar na organização de atendimentos,
- apoiar na elaboração de conteúdos psicoeducativos,
- ajudar na sistematização de dados de pesquisa.
Mas o fim último da psicologia é sempre o encontro humano, a transformação subjetiva e a construção de sentido. A IA é instrumento — um recurso a ser usado de maneira crítica e ética.
Quando o psicólogo perde essa distinção, corre o risco de reduzir sua atuação a técnicas padronizadas e deixar de lado a singularidade do paciente.
5. Psicólogos habilidosos frustradores
Aqui chegamos ao ponto mais delicado: a função do psicólogo não é apenas acolher, mas também frustrar de maneira habilidosa.
Donald Winnicott (1965) já apontava que a frustração, quando bem dosada, é fundamental para o desenvolvimento saudável. É na experiência de não ter todas as demandas atendidas de forma imediata que o sujeito cresce, descobre recursos internos e desenvolve resiliência.
Na clínica, isso significa que o psicólogo precisa provocar desconfortos criativos, abrir brechas para novas percepções, desafiar certezas. Se o terapeuta apenas confirma o desejo do cliente, ele se torna previsível, automático, mecânico — uma “inteligência artificial humana”.
“A função do terapeuta não é eliminar o sofrimento, mas transformar sua experiência em possibilidade de crescimento.” (Yalom, 2008)
Ser habilidoso frustrador é, portanto, o oposto da robotização.
6. Ética, empatia e diversidade humana
Outro ponto essencial é a ética. A tecnologia traz novos dilemas:
- confidencialidade em plataformas digitais,
- uso de dados sensíveis (LGPD),
- risco de padronização de atendimentos,
- desumanização da prática.
Mas, para além de normas, ética é também um modo de ser. É não se deixar robotizar por técnicas ou bandeiras ideológicas. É manter a empatia viva, mesmo em atendimentos mediados por tela.
Carl Rogers (1961) defendia que a condição básica da terapia é a autenticidade da relação. Se a psicologia se reduzir a protocolos automáticos ou a scripts de IA, perde-se essa autenticidade.
7. Estamos nos tornando inteligências artificiais?
Voltemos à pergunta inicial. A ameaça maior talvez não seja a IA tomar o lugar dos psicólogos, mas os psicólogos se transformarem em IA.
Isso acontece quando:
- repetimos fórmulas sem reflexão crítica,
- seguimos cegamente uma única abordagem,
- evitamos frustrar o cliente,
- buscamos apenas agradar e confirmar,
- reduzimos o humano a um “caso” ou “protocolo”.
Nesses casos, não é a IA que ameaça nossa profissão, mas a acomodação. Como Bauman (2000) dizia sobre a modernidade líquida, a busca por respostas rápidas e prontas pode corroer a profundidade das relações.
8. Psicologia e tecnologia: aliança possível
Isso não significa rejeitar a tecnologia. Pelo contrário: psicologia e tecnologia podem e devem caminhar juntas. A IA pode ajudar na organização do trabalho, na produção de conteúdo, na pesquisa científica e até no acompanhamento de alguns pacientes — desde que seja usada como ferramenta e não como substituto.
“A tecnologia deve ser um meio de ampliar a escuta, nunca de reduzi-la.” (Suassuna, 2025)
O futuro da psicologia não está em competir com a IA, mas em ser mais humana, justamente onde a IA não pode chegar: na empatia, no silêncio compartilhado, na frustração criativa, na experiência viva do encontro.
Conclusão: não se deixe robotizar
A inteligência artificial não vai substituir a psicologia — mas nós, psicólogos, podemos nos robotizar se não estivermos atentos.
O convite, portanto, é outro:
- Use a tecnologia a seu favor.
- Não abra mão da ética e da responsabilidade.
- Seja um habilidoso frustrador, e não apenas um repetidor automático.
- Lembre-se de que a abordagem é importante, mas o ser humano é maior que qualquer técnica.
Para continuar refletindo:
- Habits atômicos, de James Clear – sobre pequenas mudanças consistentes.
- O homem em busca de sentido, de Viktor Frankl – sobre a capacidade humana de transcender o sofrimento.
- O processo de tornar-se pessoa, de Carl Rogers – sobre a autenticidade da relação terapêutica.
APROFUNDE sua prática profissional:
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- Acesse o projeto Todos Cuidados, que conecta pessoas a psicólogos preparados para o cuidado integral.
- Acompanhe também o projeto Falar para seu filho ouvir, que leva reflexões sobre comunicação e família para o cotidiano.