O útero sente antes da mente? O que diz a neurociência sobre o corpo, o sentir e a mulher

  • post publicado em 09/06/25 às 14:48 PM
  • Tempo estimado de leitura: 5 minutos

 

O útero sente antes da mente? O que diz a neurociência sobre o corpo, o sentir e a mulher

Por Karla Cerávolo

Psicóloga Perinatal • Especialista em Saúde da Mulher • Coordenadora da Rede Umbiguinho

Introdução: o corpo que fala antes da palavra

A frase “o útero sente antes da mente” pode, à primeira vista, parecer mística ou simbólica. Mas quando examinamos essa afirmação à luz da neurociência, da psicologia perinatal e da medicina psicossomática, ela se torna profundamente real. Durante muito tempo, a ciência ignorou o saber do corpo feminino, fragmentando suas experiências em categorias estanques: ginecológicas, emocionais, psicológicas, hormonais. Hoje, pesquisadores e profissionais da saúde começam a conectar essas partes novamente — e o que se revela é um sistema complexo, interligado e vivo.

Esse texto propõe uma travessia por essa ponte entre corpo e mente, com foco no útero como centro de percepção emocional e fisiológica. Vamos explorar as conexões entre o sistema nervoso autônomo, o nervo vago, a interocepção e os impactos concretos dessa integração na saúde das mulheres — da TPM ao parto, da endometriose à depressão pós-parto.

A neuroanatomia do sentir: o papel do nervo vago

O que é o nervo vago?

O nervo vago é o décimo par craniano, também chamado de nervo pneumogástrico. Ele se estende do tronco encefálico até diversos órgãos do corpo — pulmões, coração, fígado, intestinos, rins e órgãos reprodutivos femininos. É considerado o principal componente do sistema nervoso parassimpático, aquele responsável por funções de “descanso e digestão”.

O dado mais relevante: 80% das fibras do nervo vago são aferentes, ou seja, levam informações do corpo para o cérebro — e não o contrário, como se pensava durante séculos.

Segundo Damasio (1994), as emoções não são geradas apenas no cérebro, mas em circuitos que incluem corpo, vísceras e sistema nervoso periférico.

Isso significa que o corpo não apenas responde ao cérebro, mas o informa. E esse fluxo acontece em tempo real, constantemente, antes mesmo que possamos pensar sobre ele.

O nervo vago e o útero: o que mostram as pesquisas?

Estudos experimentais com ratas, como os de Berkley et al. (1993), demonstraram que o colo do útero possui inervação vagal, desafiando a visão clássica de que o útero era isolado do sistema nervoso central.

A seguir, Komisaruk et al. (2004) realizaram estudos com mulheres com lesões medulares completas. Durante estimulação do colo do útero, vagina e clitóris, observaram-se ativações cerebrais em áreas como o córtex somatossensorial e a ínsula — mesmo sem conexão espinhal. Isso indicava que outra via de comunicação estava ativa: o nervo vago.

Interocepção: o corpo como território de escuta emocional

O que é interocepção?

A interocepção é a capacidade de perceber sinais fisiológicos internos do corpo. Sentir sede, fome, dor, náusea ou palpitação são exemplos disso. Mas a interocepção vai além: ela está na base da regulação emocional, da empatia e da tomada de decisões.

Craig (2002) propôs que o córtex da ínsula anterior integra essas informações internas e as transforma em consciência emocional.

A região insular, junto com o córtex cingulado e o pré-frontal medial, forma um circuito de regulação psicofisiológica. Quando algo acontece no útero — como contrações, inflamações ou alterações hormonais —, essa informação chega ao cérebro antes mesmo da racionalização consciente.

Sentir sem nomear: quando o corpo fala primeiro

Muitas mulheres relatam mudanças de humor, irritabilidade, angústia ou intuição sem entender exatamente o porquê. Essas sensações podem estar relacionadas a alterações no ciclo menstrual, ovulação, endometriose, ou mesmo gestações muito iniciais.

Em outras palavras: o útero informa antes da mente elaborar. Esse circuito é biológico, e não apenas subjetivo. Não se trata de intuição sem base, mas de um corpo que sinaliza e de um cérebro que precisa reaprender a escutar.

A neuropsicologia do ciclo menstrual e da gestação

Como o cérebro muda ao longo do ciclo menstrual

Pesquisas por neuroimagem (fMRI) demonstram que a atividade cerebral em mulheres varia conforme os níveis hormonais do ciclo. Por exemplo:

  • Durante a fase lútea, há aumento da ativação da amígdala, associada a respostas emocionais intensas.
  • Já na fase folicular, observa-se maior regulação emocional e controle cognitivo.

Fonte: Derntl et al. (2008). Menstrual cycle phase and emotion recognition: an fMRI study.

Essas flutuações mostram que o sistema nervoso central e o reprodutivo são profundamente integrados.

O cérebro da gestante: um novo mapa afetivo

Durante a gravidez, o cérebro da mulher sofre alterações estruturais e funcionais. Há aumento da plasticidade sináptica em áreas ligadas ao cuidado, empatia e proteção. O útero passa a ser um “centro irradiador” de sinais neurohormonais que reorganizam o cérebro materno.

Estudos de Hoekzema et al. (2017) mostraram que mulheres grávidas apresentam mudanças duradouras no volume de regiões cerebrais relacionadas à teoria da mente e ao vínculo materno.

A mente da gestante, portanto, não é só um estado emocional — é uma reorganização cerebral influenciada pelas mensagens do corpo.

O útero emocional: dor, trauma e escuta clínica

Dor pélvica crônica: quando o corpo carrega memórias

Mulheres com endometriose, adenomiose, miomas ou cicatrizes uterinas frequentemente desenvolvem quadros de dor pélvica crônica. Além do sofrimento físico, essas dores afetam a autoestima, a sexualidade, os vínculos e a saúde mental.

A hipersensibilização central, condição em que o cérebro amplifica os sinais de dor, tem sido documentada em mulheres com essas condições.

📚 Referência:

As-Sanie, S. et al. (2012). Functional connectivity is altered in patients with chronic pelvic pain. AJOG, 206(5), 431.e1–431.e9.

Essa dor não é imaginária. Ela é real, e o cérebro responde a ela com alterações nas redes neurais — o que exige tratamento multidisciplinar, com escuta corporal e emocional.

Trauma obstétrico e memória corporal

Experiências de violência obstétrica, cesáreas traumáticas, partos com intervenções invasivas ou perda gestacional deixam não apenas marcas psíquicas, mas também memórias corporais profundas.

O útero, ao ser violentado, altera sua comunicação com o cérebro — gerando estados de alerta, dissociação, depressão pós-parto e dificuldades de vínculo.

Estudos de Uvnäs-Moberg destacam que o toque respeitoso, o calor, o vínculo e a segurança podem modular essas respostas via liberação de ocitocina, restaurando o equilíbrio emocional.

Psicologia perinatal e o retorno ao corpo

O cuidado psicológico da mulher não pode ignorar o corpo

Psicologia perinatal não é apenas escutar a mulher grávida. É compreender que o seu corpo — e especialmente seu útero — está emitindo mensagens constantes de bem-estar ou sofrimento. É preciso integrar psicologia, ginecologia, obstetrícia e neurociência para oferecer um cuidado realmente integral.

Por isso, defender políticas públicas como a Lei do Umbiguinho (Lei 10.798/2022, Goiânia) e a Lei Federal 14.721/23, que garantem atendimento psicológico a gestantes e puérperas, é um ato de ciência e de justiça social.

O útero como mapa de cura

Na clínica perinatal, muitas mulheres reencontram suas dores mais antigas através da gestação e do parto. Ao trabalhar com o corpo, é possível elaborar memórias, curar traumas, refazer vínculos. O corpo é testemunha — e também é via de resgate.

Conclusão: uma psicologia encarnada

“O útero sente antes da mente” é uma provocação — mas também é uma constatação. A ciência já reconhece que o corpo comunica antes da palavra, que a fisiologia influencia as emoções e que o sistema reprodutivo feminino é um dos centros mais ricos de percepção interoceptiva do corpo humano.

Essa integração entre corpo e mente, cérebro e útero, não pode mais ser negligenciada. O cuidado à mulher precisa partir da escuta profunda de seu corpo — inclusive de seus silêncios e dores.

Como psicóloga perinatal, coordeno diariamente redes de escuta e cuidado que levam essa ciência para dentro da prática. A Rede Umbiguinho e o projeto Todos Cuidados, do Instituto Suassuna, são exemplos de como é possível criar pontes entre o sentir do corpo e o pensar da mente, promovendo saúde emocional, vínculo e presença.

Referências Científicas

  1. Berkley KJ, Hubscher CH, Wall PD (1993). The Nerve Supply of the Uterus and Cervix in the Rat: A Neuroanatomical Study. Journal of Comparative Neurology.
  2. Komisaruk BR et al. (2004). Brain activity associated with clitoral, vaginal and cervical self-stimulation in women with complete spinal cord injury. Brain Research.
  3. Craig AD (2002). Interoception: the sense of the physiological condition of the body. Nature Reviews Neuroscience.
  4. Derntl B et al. (2008). Menstrual cycle phase and emotion recognition: an fMRI study. Hormones and Behavior.
  5. Hoekzema E et al. (2017). Pregnancy leads to long-lasting changes in human brain structure. Nature Neuroscience.
  6. Vincent K, Tracey I. (2010). Hormones and their interaction with the pain experience. Pain.
  7. As-Sanie S et al. (2012). Functional connectivity is altered in patients with chronic pelvic pain. AJOG.
  8. Uvnäs-Moberg K et al. (2015). Self-soothing behaviors with particular reference to oxytocin release induced by non-noxious sensory stimulation. Frontiers in Psychology.

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

Acesse o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8022252527245527