O “Pão da Vida” e a fome de sentido

  • post publicado em 22/05/25 às 11:15 AM
  • Tempo estimado de leitura: 4 minutos

 

O “Pão da Vida” e a fome de sentido

Por Danilo Suassuna

Vamos falar um pouco de psicologia, religião e espiritualidade.

Vivemos tempos em que muitas expressões da fé se confundem com técnicas de autoajuda ou com promessas mágicas de resolução imediata. Mas há um espaço mais profundo, que não se sustenta em fórmulas, mas em sentido. Um espaço onde fé, razão e existência se encontram.

Quero convidar você a refletir para além das pregações ou repetições doutrinárias. Vamos mergulhar naquilo que Paul Tillich chamou de “a preocupação última” — aquilo que nos toma por inteiro, que dá direção à vida e que chamamos de espiritualidade autêntica.

Mais do que alimentar ilusões, a fé cristã, quando amadurecida, oferece ao ser humano estrutura, coragem e sentido, mesmo diante da dor. Este é o foco desta reflexão: interpretar o Evangelho à luz da psicologia da religião, da experiência simbólica do sagrado, e do alimento interior que não perece.

O “Pão da Vida” e a fome de sentido: entre o sagrado e o existencial

No evangelho de João (6, 30-35), a multidão pergunta a Jesus por um sinal, lembrando-se do maná dado a Moisés. Jesus responde que o verdadeiro pão do céu não é o maná, mas Ele próprio, o “Pão da Vida”, que desceu do céu para dar vida ao mundo. Essa metáfora é poderosa, e carrega um sentido existencial e simbólico que vai muito além da religião formal.

Para compreender o impacto dessa declaração, é preciso articular três níveis: teológico, psicológico e simbólico-religioso.

1. O Pão como símbolo universal da nutrição espiritual

Segundo Mircea Eliade, todo símbolo religioso resgata um sentido arquetípico. O pão, enquanto alimento sagrado, aparece em diversas culturas como meio de ligação com o divino. No cristianismo, Jesus se identifica com esse símbolo, não como objeto de adoração externa, mas como fonte de vida interior.

A psicologia da religião nos mostra que esse tipo de símbolo ativa necessidades profundas — desejo de pertencimento, segurança ontológica e sentido de vida. É a fome de algo que transcende o corpo e a rotina. Para Viktor Frankl, o ser humano pode até suportar o sofrimento, mas não suporta a vida sem propósito.

2. Entre o pão físico e o Pão da Vida: duas formas de saciedade

O pão físico é perecível. O “Pão da Vida”, como diz Jesus, é eterno. Paul Tillich argumenta que Deus não é um ente entre outros, mas a base do próprio ser — aquilo que dá consistência à nossa existência.

Saciemo-nos de Cristo, portanto, é um ato existencial: encontrar n’Ele a fonte do nosso valor, mesmo quando tudo o mais falha.

Para a psicologia, essa diferenciação entre as necessidades do corpo e da alma é essencial. Jung falava que, muitas vezes, aquilo que chamamos de “neurose” é na verdade “a dor de uma alma que ainda não encontrou seu sentido”.

3. A persistência na busca por sinais: insegurança espiritual e imaturidade da fé

A multidão que exige novos sinais, mesmo após ter presenciado milagres, representa um estágio inicial da experiência religiosa. Segundo William James, a fé passa por estágios: desde a adesão emocional inicial até a fé madura, que confia mesmo no escuro.

Do ponto de vista psicológico, essa busca por provas revela o medo de entrega, a insegurança diante do mistério. Crer, no sentido profundo, é romper com a lógica do controle e abrir-se à confiança.

4. Comer o Pão da Vida: um processo interior de transformação

A Eucaristia, na tradição cristã, é mais do que um ritual. É o ato de comunhão existencial com o Cristo. Quando dizemos que Ele é o “Pão da Vida”, não falamos de um dogma frio, mas de uma experiência profunda de reorientação interior.

O que chamamos de alimento espiritual, portanto, é essa capacidade de nutrir a alma com aquilo que dá direção, coragem e sentido — algo que a psicologia da religião reconhece como central na estrutura da psique humana.

5. Sentido, oração e espiritualidade no mundo contemporâneo

Num mundo consumista, centrado em conquistas externas, esse ensinamento é radical. Ele nos convida à interioridade, à contemplação e ao equilíbrio.

A oração e a meditação são, então, não apenas práticas religiosas, mas formas de escuta interior — o “voltar-se para dentro” que favorece integração e saúde psíquica.

Carl Jung dizia que “quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta”. O alimento espiritual nos desperta para um modo mais autêntico de viver — menos reativo, mais consciente e presente.

6. Fé, sentido e maturidade espiritual

Crer em Jesus como o enviado de Deus é mais do que adesão religiosa — é aceitar que o sentido da nossa vida não está em acúmulos, mas em relações, em presença e em cuidado.

É reconhecer que nossa alma tem fome de eternidade, e que essa fome só se sacia no encontro com aquilo que não passa.

Conclusão: uma espiritualidade encarnada

Jesus não veio oferecer um escapismo. Ele se fez pão, se fez presença concreta, para nos ensinar a viver de maneira plena, no aqui e agora. Comer do Pão da Vida é deixar que esse amor nos transforme por dentro e nos faça, também, pão partido para os outros.

Se a fé não se transforma em amor, serviço, compaixão e sentido — então não alimentou nada. Como disse São João da Cruz: “Ao entardecer da vida, seremos julgados pelo amor”.

Referências

  • Tillich, P. (1957). A coragem de ser. São Paulo: Editora Sinodal.
  • Eliade, M. (1957). O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes.
  • Frankl, V. (2005). Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes.
  • Jung, C.G. (1958). Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes.
  • James, W. (1902). As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix.
  • Bíblia Sagrada, Evangelho de João 6,30-35. Tradução CNBB.

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

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