O método da associação livre é essencialmente o método de investigação clínica adotado por Freud. No entanto, ele utilizou vários caminhos para transmitir e fazer consistir a psicanálise, quais sejam: a) a escrita de casos clínicos; b) análise de casos da arte e da literatura; c) situações que estão para além do princípio de prazer. Com a publicação de casos clínicos, como Ana O (Bertha Pappenheim), O Homem dos Lobos (Sergueï Pankejeff), Caso Katharina e Caso Emmy von N. (Fanny Moser) e Caso Dora (Ida Bauer), dentre outros, Freud divulga sua prática, ao mesmo tempo em que desenvolve a teoria e a técnica psicanalítica. Foi a partir do estudo desses casos que ele nos apresentou importantes conceitos, como cena primária, catarse, sexualidade infantil, sintoma transferência bem como detalhes técnicos do tratamento da histeria e da neurose obsessiva.
Por meio da análise de casos de arte e da literatura, como quando da publicação de Delírios e sonhos na “Gradiva” de Jensen (1907/1987) e de Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/1987), Freud teve que se fazer romancista, alcançando o grande público. No entanto, “os estudos de casos literários publicados por Freud são psicanálise tanto quanto seus relatos clínicos” (Porge, 2009, p. 34), ou seja, essa foi mais uma maneira que Freud encontrou de buscar o reconhecimento da psicanálise, sem perder de vista sua cientificidade, pois para Freud (1910/1987) os poetas são possuidores de um conhecimento privilegiado acerca do inconsciente.
Ao analisar as obras de arte e literárias, Freud valorizava e mergulhava nos mitos, nas lendas, nas obras de arte em geral e nos grandes clássicos, sendo Shakespeare e Goethe suas reconhecidas fontes de inspiração. Segundo Mendes (2013, p. 28-29), “Freud analisou muitos mitos e extraiu deles várias características comuns, dentre elas o fato de os mitos falarem dos desejos inconscientes e incestuosos”. Contudo, para Mendes e Viana (2010) a principal consequência da utilização desses recursos é observada na elaboração da teoria psicanalítica, merecendo relevo a influência do conceito de catarse na elaboração da técnica psicanalítica e o empréstimo do mito Édipo Rei para construir o conceito do complexo de Édipo.
Para Chnaidermann (1989, p. 11), “[…] o que busca a arte é, exatamente, dar forma para o que não pode ser nomeado, para algo que parece não acabar no discursivo. É esse processo de construção de uma forma que a arte nos desvela. E é a busca da palavra como forma que perpassa o trabalho psicanalítico”. Freud percebeu essa inter-relação do ato criativo com a psicanálise, haja vista que ambas se referem a algo comum: o inconsciente. Utilizou a análise de obras artísticas e literárias como forma alternativa para a elaboração de seus conceitos, dando a essas obras importantes destaque na busca de soluções, para além da mera reprodução dos dados observados. Tomando esse caminho, “Freud não estabelece uma separação entre a finalidade terapêutica e a finalidade didática e científica” (Porge, 2009, p. 51), mas a partir da livre associação ele elabora, com seus pacientes, os pilares para a edificação de uma nova ciência, cabendo aos relatos de casos tornarem seus postulados transmissíveis.
O relato de casos está, diretamente, associado ao projeto científico de Freud. Na psicanálise, tratamento e pesquisa caminham juntos, podendo o divã de Freud ser comparado a um grande laboratório, pois foi por meio da escuta de seus pacientes que ele elaborou a teoria e a técnica psicanalítica. No entanto, com o relato de casos Freud ultrapassa os limites da comunicação de procedimentos e resultados de pesquisa, colocando-se para além da verdade científica, mas também inaugurando um novo modo de transmitir um saber. Nas palavras de Porge (2009, p. 37), “o relato de caso não tem como finalidade somente transmitir uma verdade, mas também um saber”; ao adotá-lo como meio
de transmissão da clínica psicanalítica Freud privilegia a verdade em detrimento da exatidão, contudo sem perder de vista a cientificidade da psicanálise.
Conforme comenta Vorcaro (2010, s/p), “Freud decanta a clínica e transmite, dela, o caso. E interessa ressaltar que o caso não se limita ao paciente, mas refere- se ao encontro que a clínica promove.” Ao introduzir esse terceiro, advindo do encontro analisante-analista, Freud abre a perspectiva de um novo saber. Para Vorcaro, a função do caso clínico na pesquisa em psicanálise é mostrar a oposição entre o método psicanalítico e o método científico: “o caso clínico tem por função problematizar a generalização necessária à teoria, explodindo a imaginarização de universalidade da teoria, sempre avessa à presença do singular surpreendentemente implicado no inconsciente” (2010, s/p).
Na transmissão da psicanálise, ao teorizar sobre as situações que estão para além do princípio de prazer, Freud nos apresenta uma importante mudança na teoria psicanalítica. No texto Além do princípio do prazer (1920[1919]/1987), o autor retoma o fenômeno da compulsão à repetição, concebendo-o como derivado da natureza das pulsões e suficientemente poderoso ao ponto de desprezar o princípio de prazer, fato explicável apenas por meio das enigmáticas tendências masoquistas do ego. Porge (2009) comenta que o argumento relativo à introdução da pulsão de morte e a compulsão à repetição conduz Freud a expor as razões para mudanças radicais na prática, haja vista que a repetição substitui a rememoração e, mais ainda, que ela é da alçada da pulsão de morte. Como consequência dessa guinada, com a ausência da certeza empírica, Freud recorre à “especulação psicanalítica”, visando melhor orientar-se na prática.
Nessa obra Freud questiona também os sonhos traumáticos, pois eles reduzem o enfermo à doença, fazendo-os despertar aterrorizados. Dessa maneira esses sonhos tornam-se uma exceção à regra que os classificava como a realização de um desejo. Portanto, caberia questionar a teoria, proposta até esse momento, para o aparelho psíquico, pois ela não pode ser tomada preponderantemente a partir desse além do princípio de prazer, haja vista que a pressuposição quantitativa da busca do prazer e da evitação da dor não consegue responder a todos os processos psíquicos.
Como a realização imediata das pulsões, tendo em vista apenas a quantidade de prazer alcançada, não era a melhor alternativa, essa situação exigiu de Freud novos esforços para compreender em toda amplitude os investimentos pulsionais. Então, ao ressaltar a importância da qualidade dos investimentos pulsionais, ele promove uma virada na concepção do funcionamento do aparelho psíquico. Nessa concepção, ele possibilita a hipótese de as pulsões não se vincularem ao objeto (mundo externo) e se voltarem para o próprio eu, ou ainda a de se verem energeticamente desvinculadas de qualquer objeto, seja ele do mundo interno ou externo, inaugurando a hipótese da pulsão de morte. Haveria também uma tendência primária do organismo à redução completa das tensões; uma tendência à não-vinculação da energia psíquica a um objeto corresponderia à pulsão de morte.
O conceito de pulsão de morte em Freud costuma ser reduzido e mal entendido quando se é confundido com o princípio de nirvana, noção a que Freud recorre e que pressupõe uma tendência do organismo à cessação dos investimentos pulsionais. No entanto, em Além do princípio do prazer (1920/1987), Freud não está se referindo apenas à cessão das pulsões. Ele nos alerta para a qualidade dos investimentos e dessa forma abre perspectivas de investigação de processos que estejam para além da busca do prazer, como as produções culturais, entre as quais podemos situar o cinema.
Lacan (1973/2003) revisa os casos clínicos de Freud sob novas perspectivas, perseguindo insistentemente o objetivo de livrá-los dos reducionismos, como o da noção de verdade oculta, que se manifestaria por meio da cultura. Os casos clínicos de Freud tiveram o mérito de expor a oposição entre teoria e prática, sem, contudo, resolver seus impasses. Para esse autor a busca de solução dos problemas relativos à teoria deveria ser enfrentada a partir do tratamento e da prática, enquanto que os problemas da técnica terapêutica, que dizem respeito à verdade, seriam procurados no discurso do paciente e na relação transferencial, ou seja, a partir de um saber que não se sabe, como verdade de ficção. Considerando os pressupostos lacanianos, não é possível solucionar as tensões advindas da letra freudiana com os recursos previstos pelo mestre. Sua solução torna-se possível somente por meio da linguagem, com a análise da estrutura do significante.
Conforme comenta Porge (2009), Lacan modifica o estatuto da verdade do sujeito, por meio de um trabalho sobre o estilo, que tem para ele valor formador. Ao estabelecer seu estilo, Lacan (1988) se afasta do relato de caso e aproxima-se da poesia; sem, contudo, admitir o direito de fazer poesia com nossas análises, pois publicar o relato de caso poderia implicar uma exposição desnecessária dos analisantes. Já no início de seu ensino, considerando que a verdade tem uma estrutura de ficção, Lacan entrelaça a ficção do mito com a literatura. Ele ressalta que o mito tem uma fórmula discursiva, não transmitida na definição de verdade, Segundo ele, a verdade só encontra apoio em si mesma, mas é como palavra que ela progride. No entanto, ela não pode se apreender, tampouco impedir o movimento de acesso à verdade objetiva. A palavra pode apenas se exprimir, e isso se constitui num estilo mítico.
Para Porge (2009), o que está em questão implica uma mudança de foco, do que se fala para o modo como se fala. A verdade fala aquilo que é essencial menos o verdadeiro, pois, para Lacan (1973/2003, p. 315), “a verdade só se sustenta em um semidizer”. Ela não serviria de nada, exceto para criar o lugar onde denuncia um não saber, ou seja, um saber que não se sabe, o inconsciente. Com esse posicionamento, Lacan se afasta da forma literária do romance, adotada por Freud na transmissão da psicanálise, para se aproximar da poesia, fazendo do relato o lugar a partir do qual se aprecia a questão da verdade. Concluindo, Porge (2009) lembra que Freud passa pelo relato de caso em seu valor
fundador de transmissão da verdade, confinando com a verdade como ficção, enquanto que Lacan modifica seu estatuto, passando por um trabalho sobre o estilo, que tem para ele valor formador. Se para Freud a referência maior é o romance, para Lacan passa a ser a poesia.
Referências
Chnaiderman, M. (1989). Ensaios de psicanálise e semiótica. São Paulo, Escuta.
Freud, S. [1908/1987]. Delírios e sonhos na “Gradiva” de Jensen. In: Coleção das obras psicológicas completas de Sigmund Freud da ed. standard brasileira, Imago, 9, 17-93.
Freud, S. [1910/1987]. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In: Coleção das obras psicológicas completas de Sigmund Freud da ed. standard brasileira, Imago, 11, 67-141.
Freud, S.[1920/1987]. Além do princípio do prazer. In: Coleção das obras psicológicas completas de Sigmund Freud da ed. standard brasileira. Imago, 18, 11-85.
Lacan, J.(1973/2003). Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Lacan, J. (1988). O seminário 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Mendes, E. D. & Viana, T. C. (2010). Tragédia e psicanálise: uma arqueologia inacabada. Archai, 4, 53-64.
Mendes, E. D. (2013). Da Perda das Ilusões à Melancolia: Um estudo psicanalítico em Balzac. Brasília. Tese (doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília.
Porge, E. (2009). Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan hoje. Campinas: Editora da Unicamp.
Vorcaro, A. M. R. (2010). Transmissão e saber em psicanálise: (im)passes da clínica. Revista Psicanálise. 20, s/p, Junho/2010. Disponível em: http://www.apccuritiba.com.br/artigos/ed-20- transmissao-e-saber-em-psicanalise- impasses-da-clinica/.
O texto acima é um excerto da tese de doutorado Psicanálise e Cinema: em busca de uma aproximação, de autoria de Moisés Fernandes Lemos, defendida em 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Goiás.
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