O amor está no corpo. O amor é o corpo.

  • 11 out

Comecei a pensar nos substitutos que encontramos para o amor. Não quero explicar como cheguei a essa reflexão. Basta-me aqui deixá-la fluir e acompanhar seu fluxo. O meu fluxo, o meu corpo. Ele agora é fonte que estimula meus pensamentos. Tentamos agarrar o amor com os pensamentos e acabamos afugentando-o. Procuramos o amor em tantos lugares, coisas e pessoas, e ignoramos que ele está (ele é) mais perto e concreto do que imaginamos – sim, porque imaginamos demais. Vivemos nossa vida predominantemente na fantasia, na zona intermediária, e não mergulhamos de verdade no rio da vida. Tudo o que sentimos – não, TUDO O QUE SOMOS só se completa quando vivido à flor da pele! E meu Deus… Como estamos alienados de nossa própria pele. Essa pele que tratamos como mero invólucro de nossos órgãos vitais está despida de sua vitalidade própria. Esse corpo que tratamos como sede de prazer evita o prazer mais sublime que se pode viver: o prazer de ser um corpo vivo, um corpo que sente, um corpo que se deixa ser tomado. Uma cliente que convive com o TDAH não falava sobre sua condição há muito tempo. Chegou a uma sessão recente dizendo estar “tirando ele do canto e trazendo para o centro de sua vida”, e com ele a exaustão de controlar-se o tempo todo para não deixar o TDAH prejudicar suas atividades, a frustração de muitas vezes não conseguir e a dor de ser incompreendida por profissionais e pessoas próximas. Próximas aqui é força de expressão, pois sua dor é justamente por viver seu problema de maneira tão sozinha, sem ter alguém que sinta de verdade a sua dor, a ponto de ela mesma por muito tempo ignorá-la e retirá-la de sua consciência – melhor, de seu corpo. Mas esse corpo continuou sediando as dores, as frustrações e a necessidade de ser abraçada em sua realidade particular. O corpo nos salva do esquecimento, não é? Tanto que meu próprio corpo sentiu junto a essa cliente o que eu mesmo havia quase esquecido. Enquanto a ouvia, a minha própria dor e solidão de ser gago aflorou. Deixei. Deixei-me ser tomado. Senti-me presenteado pelo que minha cliente aflorou em mim. Presenteei-a de volta, dizendo-lhe que o que ela estava deixando aflorar em sua própria pele estava evocando algo em mim que eu também havia “deixado num canto”. O interessante é que eu falo de gagueira com muita frequência. Em sessões, em palestras, com os amigos, com pessoas desconhecidas, no Instagram… Eu não tenho problema em falar sobre a gagueira. Mas que coisa, não? Como posso falar tanto sobre algo ao mesmo tempo em que todo o sentimento daquele algo está esquecido, neutralizado, deixado num canto? Passei a me dar conta da frequência com que não sinto o que falo! Meu discurso frequentemente se divorcia de meu corpo! Não à toa, através da gagueira meu corpo volta a dar notícias do sentimento que “esqueço”. O mesmo pode acontecer com o TDAH, com transtornos sexuais, com transtornos ansiosos e tantos outros distúrbios que, não por acaso, carregam sempre em seu quadro clínico um conjunto específico de perturbações corporais. Se observarmos bem, há inúmeros mecanismos sociais em atividade cujo efeito acaba sendo o de divorciar-nos de nossa corporalidade. A pornografia divorcia a sexualidade do contato corpo a corpo. Os jogos virtuais divorciam a adrenalina e a agressividade da fisicalidade, confinando-as ao campo da abstração. A indústria alimentícia causa divórcios em massa entre o sabor da comida e a sua nutrição. No sistema capitalista, quanto mais se cria produtos que aliem alta recompensa (prazer) e baixo custo (financeiro, egóico, de tempo e, acima de tudo, corporal), mais se promove consumo. Somos hoje hiperestimulados pela virtualidade e pela crescente facilidade que a tecnologia nos deu em interagir com o mundo. Estar no mundo tem sido tão fácil e custado tão pouco que tem nos custado o corpo que somos. Ao descobrir sentimentos “escondidos” em seu próprio corpo e deixá-los aflorar, uma outra cliente exclamou: “Meu Deus, se eu deixar isso aflorar por mais tempo, eu vou ser uma pessoa muito amorosa!” Fiquei intrigado com a afirmação dela. É claro! Tudo é injetado com mais vida – e, portanto, mais amor – quando nos apropriamos do corpo que somos. “Quanto amor há em seu corpo!”, respondi. Na verdade, nosso corpo inteiro é amor, pois se amor é sentimento e atitude diante do outro, ambos existem no e através do corpo. Como matar nossos sentimentos? Tirando a vida do nosso corpo. Como falhar em nossas escolhas e gerar confusão e conflito em nossas relações? Deixando de ouvir nosso corpo. Se não amo primeiro o corpo que sou, alieno-me também da corporeidade do outro. Alieno-me do que há de mais vivo e real no contato com o outro e comigo mesmo. Nossa primeira relação amorosa começa dentro de um corpo. Depois, vivemos por muito tempo aninhados a um corpo. Enquanto bebês, nosso corpo comunica ao ambiente o que ainda não podemos comunicar com a boca. Tal prerrogativa permanece em vigor por toda a vida, pois mesmo com o desenvolvimento da fala e do pensamento abstrato, o corpo continua assumindo sobre si necessidades psicológicas e mensagens existenciais importantes que lutam para ser ouvidas, por mais surdo ou indiferente que o ambiente possa se mostrar. Afinar nossa escuta aos sinais e mensagens que nosso corpo comunica é indispensável para uma boa saúde existencial. O excesso de controle racional sobre os sentimentos e a vida atribulada, cheia de responsabilidades e preocupações contribui para permanecermos insensíveis e confusos quanto ao que acontece ao corpo que somos.

Já parou pra ouvir seu corpo hoje?

Pedro Paulo Coelho (@pedropaulocoelhoo)

Psicólogo, Gestalt-terapeuta, palestrante e gago incurável.

Compartilhe: