Um estudo em bebês acrescenta ao debate sobre se nós chegamos ao mundo preparados para altas habilidades cognitivas, como reconhecimento facial.
Neurocientistas entendem muito sobre como o cérebro humano é organizado em sistemas especializados para reconhecer rostos ou cenas ou outras funções cognitivas específicas. As perguntas que restam relacionam-se com como tais capacidades surgem. Essas redes — e as regiões que as compreendem — já são especializadas no nascimento? Ou elas desenvolvem essas sensibilidades ao longo do tempo? E como estruturas poderiam influenciar o desenvolvimento de funções? “Essa é uma questão filosófica antiga de como 20 o conhecimento é organizado”, diz o psicólogo Daniel Dilks, da Universidade Emory. “E de onde ele vem? Com o que nós nascemos, e o que requer experiência?”.
Dilks e seus colegas abordaram essas questões em uma investigação da conectividade neural nos humanos mais jovens estudados nesse contexto até hoje: 30 bebês variando entre seis e 57 dias de vida (com uma média de 27 dias). Seus resultados sugerem que configurações neurais precedem, e assim podem guiar, especializações regionais, esclarecendo como sistemas de conhecimento emergem no cérebro. Outros trabalhos nessa linha podem prover insights em distúrbios do neurodesenvolvimento, como o autismo. No estudo, publicado em março na Proceedings of the National Academy of Sciences USA, os pesquisadores observaram duas das mais estudadas redes cerebrais dedicadas a uma função visual particular — uma que é subjacente a reconhecimento facial e outra que processa cenas. As áreas occipital e fusiforme facial respondem seletivamente a rostos, e estão altamente conectadas em adultos, sugerindo que constituem uma rede de reconhecimento facial. A mesma descrição se aplica para o giro para-hipocampal e para o complexo retrosplenial, mas para cenas. Todas essas quatro áreas estão no córtex temporal inferior, que fica atrás da orelha nos humanos.
A equipe utilizou uma técnica chamada de
ressonância magnética funcional em estado de repouso (resting-state
funcional magnectic resonance image, ou rsfMRI), que mede o nível de
sincronização de atividade em diferentes regiões cerebrais para avaliar o quão
conectadas elas estão. Os bebês foram escaneados enquanto dormiam e firmemente
enrolados. “Obter dados do rsfMRI de recém-nascidos é uma nova fronteira
em neuroimagem”, diz o neurocientista e autor principal do estudo, Frederik
Kamps, agora no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Você
precisa que a cabeça do participante esteja parada, e um bebê dormindo está
disposto a ficar quieto”. Os pesquisadores descobriram que as regiões faciais
estavam altamente conectadas umas às outras, mas não às regiões de cenas, e
vice-versa, nessa pouca idade. Levaria meses até que eles se tornassem
seletivos por rostos ou cenas, sugerindo que a conectividade precede o
desenvolvimento das funções.
A equipe também avaliou conexões entre essas regiões e a parte do cérebro na qual o input visual chega da retina primeiro: o córtex visual primário, ou V1. Essa região é estruturada para que tais inputs do centro da retina cheguem à uma área diferente das da periferia do campo de visão, formando um mapa do mundo visual. A rede facial estava fortemente conectada à área central do V1, enquanto a rede de cenas estava mais firmemente ligada à sua área periférica. Essa disposição provavelmente se relaciona com o fato de que nós normalmente nos fixamos em rostos, enquanto cenas se estendem através de todo o nosso campo visual. Essas redes, presentes nos primeiros dias de um bebê, estão, portanto, conectadas para receber o input mais apropriado para a função que vão eventualmente performar. Significa isso que reconhecimento facial e processamento de cenas são inatos? Pesquisadores discordam nesse ponto.
Em 2017, a neurobiologista Margaret Livingstone, da Harvard Medical School, publicou um estudo de macacos recém-nascidos, que concluiu que conectividade precede função — mas apenas no que diz respeito à mapas visuais. Livingstone, que não era autora do novo artigo, acha que a sensibilidade para categorias específicas de coisas, como rostos, surge do acúmulo de experiências de visualizá-las. “Você nasce com esses mapas, e é isso que leva à organização final do cérebro”, ela diz. “Esse é o andaime sobre o qual a experiência age”. Em outro estudo, ela encontrou que macacos criados sem ver rostos não desenvolveram seletividade facial. Outros, entretanto, mostraram que pessoas cegas congênitas têm regiões seletivas de rostos e cenas (usando estímulos táteis ou auditivos, por exemplo), sugerindo que essas funções podem ser inatas — ou que pelo menos podem depender de mais do que apenas input visual. Dilks observa que rostos não são a única coisa em que nos fixamos, e outros pesquisadores propuseram que conexões de alto-nível de regiões corticais envolvidas em interações sociais (entre mãe e bebê, por exemplo) podem moldar o desenvolvimento da seletividade facial.
Esse debate não mostra sinais de ser resolvido em breve. “Tudo se resume à essa questão filosófica: os humanos são especiais? Eles têm partes do seu cérebro predestinados a se tornar essas coisas especiais?”, Livingstone diz. “Ou podemos explicar isso usando princípios de baixo nível que herdamos de animais inferiores?”. Além desse emaranhado teórico, Dilks está de olho em possíveis aplicações clínicas. Ele está especialmente interessado em dois distúrbios do neurodesenvolvimento, que possivelmente envolvem diferentes configurações neurais: pessoas com autismo têm impedimentos sociais que podem estar relacionadas a processamento facial, e uma condição chamada Síndrome de Williams causa problemas de navegação. Irmãos de crianças com autismo poderiam ser estudadas para perguntar se a conectividade nas regiões faciais pode prever o início da condição, que normalmente não é diagnosticada antes de no mínimo dois anos de idade. Dilks também espera estudar bebês com Síndrome de Williams para questionar se a conectividade entre regiões de processamento de cenas é um problema. “É importante saber isso”, ele diz, “porque talvez nós possamos dominar a incrível maleabilidade do cérebro infantil para intervir antes”.
– Simon Makin
MAKIN, Simon. Born Ready: Babies Are Prewired to Perceive the World. Scientific American Mind, EUA, v.31, n.3, p. 4-5, mai/jun, 2020.
Traduzido por Isabela M. S. Tomaz
Photo by Sharon McCutcheon on Unsplash