Luto gestacional, presença psicológica e a reconstrução possível

  • post publicado em 23/05/25 às 11:01 AM
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Luto gestacional, presença psicológica e a reconstrução possível

“Consulta com psicóloga? Acabei de perder minha filha. Estou na pior situação que um ser humano pode estar.”

Essa frase, dita por uma mulher poucos minutos depois de saber que sua filha havia morrido dentro do útero, revela a crueza de um momento para o qual nenhuma linguagem é suficiente. A ideia de procurar ajuda psicológica naquele instante parecia absurda. E, no entanto, foi exatamente essa escuta — sensível, ética, qualificada — que permitiu que a dor não se tornasse uma prisão.

Este é o testemunho de uma mãe que, ao lado da psicóloga Carla, atravessou o impossível. Mas este também é um chamado. Um convite à sociedade, aos profissionais e às políticas públicas para que olhem, de frente, para o luto gestacional e neonatal. Para que saibam que existem caminhos — e que esses caminhos precisam estar abertos para todas as mulheres, não só para quem pode pagar.

O luto gestacional é real — e ainda é silenciado

A perda de um bebê durante a gestação é um evento profundamente traumático. Não se trata apenas da morte de um filho: trata-se da interrupção abrupta de um projeto de identidade, de maternidade, de vínculo. Como mostram Cacciatore (2013), O’Leary e Warland (2013), e outras autoras da psicologia perinatal, esse tipo de luto carrega uma especificidade muitas vezes invisível — porque socialmente não se reconhece o bebê como sujeito e não se reconhece a mãe como enlutada.

O que essa mãe nos conta — com a generosidade de quem transforma dor em testemunho — é que a intervenção psicológica pode mudar tudo. E quanto mais precoce, mais potente.

Psicologia perinatal: presença que sustenta

No relato, Carla é descrita como alguém que “parecia estar dentro da minha mente”. Isso não é milagre. É técnica, formação e escuta apurada. É o que Winnicott chamaria de holding: sustentar alguém que está prestes a desabar.

Entre as práticas mencionadas, destaca-se a visualização de parto — uma técnica utilizada para favorecer o trabalho de parto, inclusive no contexto de perdas. Deitada, guiada por Carla, essa mãe visualizou a filha nascendo. Horas depois, entrou em trabalho de parto com três centímetros de dilatação — algo que, até então, parecia impossível. Estudos como os de Simkin & Bolding (2004) dão respaldo a essa prática, mostrando como o corpo responde à imagem psíquica do parto.

Essa é a força da psicologia quando ela atua no tempo certo, do jeito certo.

A perda de uma filha, o cuidado com um filho

“Eu estaria em depressão profunda, não conseguiria cuidar do meu filho. E ele teria esquecido de mim, do meu amor.”

Essa é uma das frases mais tocantes do relato. Porque o luto não para no útero. Ele se estende à casa, ao casamento, aos filhos que ficam — e, muitas vezes, à capacidade de amar de novo.

A psicologia perinatal não cuida só do momento da perda, mas do vínculo que permanece com a vida. Como ajudar um irmão a compreender que a irmãzinha não virá? Como reconstruir a função materna sem negar a dor? Essas são perguntas que demandam muito mais do que respostas — exigem presença clínica, ética e humana.

Espiritualidade e sentido: Deus como parte do cuidado

O relato também nos lembra que o sofrimento não é apenas clínico: é existencial, espiritual. Carla não impôs nenhuma crença, mas acolheu aquela que já habitava a paciente. E foi por esse caminho que ajudou a reconstruir sentido.

Autores como Park (2010) defendem que a reconstrução de significado é um dos eixos mais importantes do luto saudável. Não se trata de “superar”, mas de integrar. E para muitas mulheres, isso se dá através da fé.

O que seria de mim sem esse apoio?

É assim que o relato termina: com a pergunta que muitas mulheres sequer conseguem formular porque não têm acesso a esse tipo de cuidado.

Essa mãe teve a chance de ser acolhida por uma psicóloga experiente, no tempo certo, com a escuta certa. Mas ela mesma se pergunta: e quem não tem?

A dor da perda pode ser irreparável, mas o abandono é evitável.

Rede Umbiguinho e Todos Cuidados: quando o cuidado vira rede

Esse testemunho ecoa exatamente com o que a Rede Umbiguinho vem construindo: uma resposta concreta, sensível e estruturada ao cuidado psicológico de mulheres durante a gestação, o parto, o puerpério — e também nas perdas.

A dor dessa mãe não pode ser invisível. E é por isso que a Rede Umbiguinho existe. Porque cada bebê importa, mesmo quando não nasce com vida. Porque cada mãe importa, mesmo quando não carrega mais o filho nos braços.

E quando falamos em garantir esse cuidado como política de saúde, falamos também do projeto Todos Cuidados, uma iniciativa do Instituto Suassuna voltada à ampliação do acesso à saúde mental qualificada, com base na ciência, na empatia e na justiça social. O que hoje foi possível para uma mãe, precisa se tornar acessível para todas.

Conclusão: psicologia que escuta, que sustenta, que salva

Este não é um texto sobre técnicas psicológicas. É sobre humanidade.

É sobre o que acontece quando alguém tem coragem de dizer “sim” à presença de uma psicóloga no momento mais devastador da vida.

É sobre uma profissional que não teve medo de estar ali — entre o medo, o sangue, o silêncio, a perda.

É sobre o que a psicologia pode fazer quando chega a tempo. E sobre o que a sociedade deve fazer para que ela chegue a todas.

Se você conhece alguém que passou ou está passando por uma perda gestacional ou neonatal, encaminhe este texto. Faça com que essa rede chegue mais longe. E se quiser conhecer mais sobre a Rede Umbiguinho e o Todos Cuidados, acesse nosso site e venha fazer parte da mudança.

Porque toda vida importa. E todo luto merece cuidado.

Dr. Danilo Suassuna
Psicólogo, Doutor e Pós-Doutor em Psicologia e Educação
Fundador do Instituto Suassuna | Coordenador da Rede Umbiguinho e do Projeto Todos Cuidados

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

Acesse o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8022252527245527