

Ideal pesa mais que a realidade: a maternidade como construção social
1. Introdução: A pressão cultural da maternidade ideal
Ser mãe, em nossa cultura, carrega consigo uma aura de nobreza, plenitude e destino. “Mãe é tudo”, “mãe é sagrada”, “mãe é amor incondicional”. Essas frases, tão comuns no senso comum, moldam expectativas que não apenas idealizam a maternidade — elas a aprisionam.
Desde o início da gravidez, a mulher é bombardeada por mensagens que dizem como ela deve se sentir: feliz, realizada, grata. A dor, o medo, a angústia e o cansaço raramente têm espaço legítimo. Quando aparecem, são logo anulados com frases como “mas o importante é que o bebê está bem”.
O problema é que, ao tentar encaixar a realidade da experiência materna em um ideal rígido, criamos um abismo: o que a mulher vive não corresponde ao que ela acredita que deveria estar vivendo. E nesse abismo nascem a culpa, o silêncio e a solidão.
Este texto propõe lançar luz sobre esse abismo, explorando como a maternidade, longe de ser apenas biológica, é uma construção social carregada de normas, exigências e fantasias culturais. E mais: propõe caminhos para que possamos desconstruir esses ideais sem destruir o valor simbólico e afetivo da maternidade possível.
2. Maternidade: instinto ou invenção?
Durante muito tempo, acreditou-se que a maternidade era um instinto biológico inato à mulher. Mas os estudos das ciências humanas mostram que, mais do que instinto, a maternidade é uma invenção histórica, política e simbólica.
A filósofa francesa Élisabeth Badinter, em Um amor conquistado (1985), demonstra que nem sempre o amor materno foi idealizado como é hoje. Na França do século XVIII, mães da aristocracia evitavam o contato direto com seus filhos. Enviá-los para amas de leite era visto como prática refinada — e não como negligência.
A antropóloga americana Nancy Scheper-Hughes (1992), ao estudar mães em áreas de extrema pobreza no Nordeste brasileiro, identificou outra realidade: para lidar com a morte constante de seus filhos, muitas mães desenvolviam um distanciamento emocional temporário. Amor e cuidado, nesses contextos, são estratégias moldadas pela sobrevivência.
Esses exemplos revelam que o que entendemos como “maternidade” não é universal, natural ou imutável. Pelo contrário, varia conforme a cultura, a época, as condições de vida e o discurso dominante sobre o papel da mulher.
3. O peso do discurso social sobre a mulher grávida
A gravidez é um período naturalmente sensível e de grande reorganização psíquica. No entanto, o discurso cultural dominante impõe à gestante uma narrativa única: a da plenitude. “Você deve estar radiante!”, dizem. E se não estiver?
Geneviève Bydlowski (2004), psiquiatra e psicanalista francesa, chama a gravidez de um “tempo psíquico privilegiado”, no qual conteúdos inconscientes recalcados emergem. A mulher reencontra sua história de filha, revive memórias da infância, e projeta expectativas sobre o futuro.
Mas quando essa complexidade emocional é silenciada por discursos como “gravidez é o momento mais feliz da vida”, a mulher se vê sozinha em suas dores legítimas. Ela não encontra espaço social para expressar seu sofrimento — e, quando o faz, é rapidamente desautorizada.
Essa desconexão entre o que se sente e o que se “deve” sentir gera sofrimento psíquico. É nesse ponto que o ideal da maternidade passa de inspiração a opressão.
4. Amor materno: construção ou natureza?
A maternidade idealizada parte do princípio de que o amor de mãe é incondicional, automático, universal. Mas será mesmo? A psicologia contemporânea e a psicanálise colocam essa ideia em xeque.
Joan Raphael-Leff (2001), em sua obra sobre os processos psicológicos da gestação, nos lembra que o vínculo materno é algo que se constrói — e não uma certeza emocional inata. Muitas mulheres não se sentem imediatamente conectadas ao bebê durante a gestação, e isso não as torna menos mães.
Daniel Stern (1997) propõe que, ao longo da gravidez, a mulher constrói três imagens do bebê: o bebê imaginário (fantasioso), o bebê simbólico (idealizado socialmente) e o bebê real (aquele que nasce com sua singularidade). O verdadeiro vínculo nasce do encontro — e, como todo encontro, pode envolver desencontros, frustrações e reencontros.
Ao compreender o amor materno como uma construção relacional e afetiva, libertamos as mães da exigência do amor perfeito e permitimos que vivam a maternidade com mais autenticidade e menos culpa.
5. A maternidade oculta e o silêncio das ambivalências
A psicóloga argentina Laura Gutman (2001) popularizou o termo “maternidade oculta” para se referir àquilo que não é dito: a raiva, o medo, o cansaço extremo, o desejo de fugir, a frustração com o corpo, o sentimento de inadequação.
Essas emoções são parte do repertório afetivo de muitas mães, mas são socialmente interditadas. Quando surgem, são interpretadas como sinais de fracasso ou patologia — nunca como experiências legítimas de um processo complexo.
A cultura do “mãe é tudo” e do “mãe sempre feliz” não oferece espaço para a ambivalência. Mas é justamente nela que a saúde emocional se constrói: reconhecer o amor e o cansaço, o desejo e o medo, o vínculo e o limite.
A psicanálise de Donald Winnicott (1956) oferece um alento: não é necessário ser uma mãe perfeita. Basta ser uma “mãe suficientemente boa” — alguém capaz de falhar e reparar, amar e frustrar, sustentar e recuar.
6. Quando o ideal se torna opressor: culpa, solidão e vergonha
A distância entre o ideal e a realidade tem nome: culpa. Ela aparece quando a mulher sente que não está à altura da mãe que imaginava ser. E, muitas vezes, essa culpa é tão grande que paralisa, consome e silencia.
A solidão também é uma das grandes dores da maternidade contemporânea. Ainda que vivamos numa era de hiperconexão digital, muitas mães se sentem profundamente isoladas. A cultura diz que “mãe deve dar conta de tudo”, mas o cotidiano revela que ninguém dá conta de tudo sozinha.
E quando as falhas acontecem — o bebê não dorme, o parto não foi como o esperado, o vínculo não surgiu de imediato — nasce a vergonha. A mulher sente que falhou no que seria sua missão mais essencial: maternar.
Essa dor, se não for escutada e acolhida, pode evoluir para quadros depressivos, ansiedade e outras formas de sofrimento emocional.
7. O papel da psicologia: escutar, despatologizar, sustentar
A psicologia perinatal surge para acolher essas dores legítimas, sem reduzi-las a diagnósticos apressados. O psicólogo que atua na gestação e no puerpério não está ali para julgar ou corrigir — mas para escutar, nomear, sustentar e validar.
O atendimento psicológico oferece à mulher um espaço onde ela pode ser inteira: com suas luzes e sombras, suas potências e suas fragilidades. Um espaço onde ela pode dizer o que sente — inclusive quando isso não cabe nos moldes do “ser mãe ideal”.
Despatologizar a maternidade é um ato político e clínico. É devolver às mulheres o direito de viver a gestação e o puerpério com verdade emocional.
8. Desconstruir sem destruir: a maternidade possível
Ao desconstruirmos o ideal da mãe perfeita, não queremos destruir o valor simbólico da maternidade. Pelo contrário. Queremos torná-la mais possível, mais real, mais humana.
A maternidade possível é aquela em que a mulher pode ser sujeito, e não apenas função. Pode ser escutada, respeitada, cuidada. Pode errar e aprender. Pode amar e duvidar. Pode construir uma relação com o filho que seja afetiva, consistente e suficientemente boa — mesmo que não perfeita.
Essa é a maternidade que acolhe e liberta. E é também a base de um vínculo mais saudável entre pais e filhos.
9. O projeto @falarparaseufilhoouvir: presença, vínculo e escuta
É nesse contexto que nasce o projeto @falarparaseufilhoouvir, criado pelo psicólogo Dr. Danilo Suassuna. O projeto é um espaço de escuta, orientação e troca com famílias que desejam criar filhos com mais presença, vínculo e saúde emocional.
Com postagens sobre escuta ativa, limites com afeto, rotina emocional e parentalidade consciente, o perfil oferece conteúdo baseado na psicologia, com linguagem acessível e respeitosa.
Porque, antes de falar para o filho ouvir, é preciso aprender a ouvir a si mesmo — e a história que se carrega.
10. Conclusão
Idealizar é humano. Mas quando o ideal se torna tirânico, ele adoece. A maternidade não precisa ser perfeita para ser bonita. Não precisa ser plena para ser verdadeira. Não precisa ser silenciosa para ser sagrada.
A maternidade possível é aquela que se constrói com base na verdade emocional e no cuidado recíproco — entre mãe e filho, entre pais e sociedade, entre desejo e realidade.
E como dizia Winnicott:
“Antes de nascer um bebê, nasce uma mãe. E essa mãe precisa ser suficientemente cuidada para cuidar.”