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Gravidez: uma travessia emocional e simbólica
A gestação é um dos momentos mais intensos da vida de uma mulher — e não apenas por aquilo que se transforma fisicamente. Ainda que o senso comum a descreva como um período de alegria e plenitude, a psicologia reconhece que a gravidez é, sobretudo, uma travessia emocional e simbólica, onde se gestam não apenas bebês, mas também histórias, memórias, fantasias e novas identidades.
Trata-se de um processo em que o corpo, a mente e o psiquismo caminham juntos, atravessando territórios que não são só hormonais, mas também subjetivos, inconscientes, relacionais e até espirituais. Gestar não é apenas gerar um filho — é ser gestada por uma nova versão de si mesma.
Muito antes do parto, nasce uma mãe
Durante a gestação, a mulher inicia um processo psíquico profundo, nem sempre visível aos olhos externos. Ela se vê desafiada a reorganizar sua própria identidade, rever sua história de filha, seu lugar na família, suas crenças sobre maternidade e até mesmo seu valor pessoal.
A britânica Joan Raphael-Leff (2001) chama esse processo de matrescência — termo que descreve a complexa transformação emocional e simbólica pela qual a mulher passa ao se tornar mãe. Esse processo não acontece de uma só vez, nem de forma linear. Ele envolve ambivalência, luto do eu anterior, confronto com fantasias idealizadas e uma profunda reconfiguração psíquica.
Essa passagem é comparável aos ritos de transição de antigas culturas, onde nascer mãe envolvia um atravessamento com suporte coletivo, escuta e tempo. Na contemporaneidade, no entanto, esse processo muitas vezes ocorre no silêncio, na solidão e sob o peso de ideais inalcançáveis.
Corpo sente, a alma fala
A francesa Geneviève Bydlowski (2004) propõe que a gravidez atua como um “tempo psíquico privilegiado”, em que experiências inconscientes recalcadas voltam à cena — especialmente aquelas ligadas à infância da mulher e à sua relação com a própria mãe. Segundo a autora, há na gestação um “abalo narcísico” inevitável: o corpo muda, os limites se diluem, o controle se relativiza. O que antes era contínuo se fragmenta, e a mulher precisa construir um novo contorno de si.
Esse movimento mobiliza tanto angústia quanto desejo. Muitas mulheres relatam medo do parto, medo de falhar, medo de não amar o bebê “o suficiente”. Mas também relatam esperança, reencantamento com o corpo, sentido de transcendência. É nesse paradoxo que a gravidez se configura como um tempo de profundas reconstruções subjetivas.
O bebê sonhado, o bebê simbólico e o bebê real
O psicanalista Daniel Stern (1997) contribui com uma ideia essencial: durante a gestação, a mulher constrói simultaneamente três imagens de bebê:
- O bebê imaginário, moldado por desejos, projeções e sonhos;
- O bebê simbólico, carregado de significados culturais, familiares e sociais;
- O bebê real, que trará sua própria presença, seus ritmos e suas necessidades singulares.
O trabalho emocional da mãe envolve a tarefa de fazer o luto do bebê idealizado para acolher o bebê real, com tudo que ele carrega de alteridade e imprevisibilidade. Essa é uma das passagens mais exigentes da travessia emocional da gravidez — e, ao mesmo tempo, uma das mais humanizantes.
Winnicott e a “preocupação materna primária”
Donald Winnicott (1956; 1965), pediatra e psicanalista inglês, oferece uma das contribuições mais generosas para a compreensão psicológica da gestação. Ele descreve um estado psíquico específico da gravidez chamado “preocupação materna primária” — uma condição temporária e saudável em que a mulher se torna mais sensível, empática e emocionalmente sintonizada ao bebê que está por vir.
Winnicott reforça, no entanto, que essa sensibilidade aumentada torna a mulher mais vulnerável emocionalmente. Por isso, ela precisa ser protegida e acolhida, não apenas fisicamente, mas também subjetivamente. Como ele diz: “É preciso que cuidem da mãe para que ela possa cuidar do bebê”.
Esse cuidado envolve escuta, validação de sentimentos, presença afetiva e suporte emocional — o que a psicologia perinatal oferece com profundidade e técnica.
A psicologia perinatal como ponte de escuta
O psicólogo perinatal atua nesse campo como facilitador de narrativas, organizador do caos emocional e apoio emocional à travessia. Seu trabalho não é apenas tratar adoecimentos, mas prevenir sofrimentos psíquicos, promover vínculos e sustentar a maternidade como processo subjetivo legítimo.
Por meio de rodas de conversa, atendimentos individuais, oficinas e orientações familiares, o psicólogo ajuda a mulher a:
- Lidar com as ambivalências e idealizações da maternidade;
- Elaborar medos sobre o parto, o puerpério e a parentalidade;
- Integrar rede de apoio (companheiro(a), avós, etc.) ao processo de cuidado;
- Prevenir quadros como depressão pós-parto, transtorno de ansiedade ou burnout parental.
Nesse sentido, a atenção psicológica durante a gravidez não é luxo, é necessidade. É um investimento em saúde emocional para mãe, bebê e toda a família.
A travessia como transformação
Mais do que um túnel escuro ou um intervalo de espera, a gravidez é um caminho de transformação. Ela não apenas prepara o nascimento de um bebê, mas também de uma mãe, de um pai, de uma família, de uma nova identidade no mundo.
E como toda travessia, ela precisa de tempo, espaço, amparo e escuta. Porque não se trata apenas de gestar um filho — trata-se de permitir que o amor se torne forma, presença, cuidado.
Ao final desse caminho, o que nasce não é só um bebê. Nasce uma nova forma de ser no mundo.
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Referências
- Bydlowski, G. (2004). La dette de vie: Etudes psychanalytiques sur la maternité. Paris: PUF.
- Conselho Federal de Psicologia (CFP). (2021). Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) em contextos de atenção à gestação, parto e puerpério. Brasília: CFP.
- Raphael-Leff, J. (2001). Psychological Processes of Childbearing. London: Chapman & Hall.
- Stern, D. N. (1997). A constelação da maternidade: O panorama da psicoterapia mãe-bebê. Porto Alegre: Artmed.
- Winnicott, D. W. (1956). Primary maternal preoccupation. In: Collected Papers. London: Tavistock.
- Winnicott, D. W. (1965). O bebê e sua mãe. São Paulo: Martins Fontes.
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