EVITAR A SOLIDÃO É O MESMO QUE ETERNIZÁ-LA

  • 11 out

Reflexões sobre o dilema da solidão, a vivência da solidão é um dos paradoxos da existência que mais tem me interessado.

Não há um paciente em psicoterapia que em algum momento não traga a queixa de que se sente sozinho na vida ou em alguma relação específica. Wheeler (1994) até afirma que o paciente vem à terapia porque está muito sozinho com seu problema. Não é à toa que vários transtornos psicológicos se estruturam em função da evitação da vivência da solidão. Isso acontece porque somos seres ontologicamente relacionais – e justamente por isso, fadados à solidão. Quando esta se agrava, agrava-se também a saúde de nossas relações com o outro e com a gente mesmo.

Conforme Buber (2012, p. 134), “a relação é o espaço ontológico cuja característica é reunir sem fundir, onde o homem simultaneamente encontra igualdade e distinção”. Para nosso próprio self assumir contornos mais definidos e estáveis, precisamos continuamente ter com o mundo uma relação de contato e separação. Dessa forma, cada relação nos lança a uma sequência infinita de mortes e (re)nascimentos que inevitavelmente nos encaminham para a solidão (Pinto, 2021). Ao passo em que há inúmeros fatores que interferem na qualidade de nossas relações com o outro e com a gente mesmo, a proximidade da morte é talvez o mais central. Bert Hellinger (2001) afirma que todo relacionamento é um processo em direção à morte. No contexto dessa afirmação, o autor refere-se ao fato de que a vivência de toda relação acontece com a consciência da morte e de que a relação um dia irá acabar. Cada relação só pode ser vivida com a intensidade correspondente ao quanto cada pessoa se conscientiza e abraça a perspectiva da morte. Porém, entendo que a morte se anuncia também no fato de que cada contato nos muda de maneira irrevogável. Do contato com o diferente nasce uma novidade de vida que inevitavelmente substitui (mata) uma outra.

Os contatos humanos, poderosos que são, podem “matar” ilusões, valores, conceitos, expectativas e padrões cristalizados de comportamento, gerando um profundo desarranjo em nossa estabilidade existencial. Se a vida humana se dá na vitalidade da coexistência (Buber, 2021), acrescento que na coexistência se dá também a morte do ser humano. Nessa perspectiva, não é difícil compreender porque as pessoas evitam a experiência da solidão, pois cada contato, independente do quão profundo seja, nos aproxima da morte. O problema é que pelo medo da solidão – e, portanto, da morte – passamos a coexistir com cada vez menos vitalidade. Reparem na quantidade de coisas que fazemos hoje de maneira virtual. O ambiente virtual tem sido o ethos de parte assombrosa dos contatos humanos, inclusive os sexuais. Por falar em sexualidade, podemos observar um profundo e quase generalizado desencanto nas relações românticas acompanhado de um pavor da experiência de apaixonamento e/ou da conjugalidade. A sexualidade tem sido enganosamente despida de seu potencial criativo e transformador justamente porque se tirou dela tudo o que pressagia a morte: o afeto, a possibilidade da concepção, o compromisso com uma relação e com o sentimento do outro, a possibilidade da perda (morte) do prazer e da liberdade individual. Busca-se uma sexualidade que não desarranja, que não fere o senso de segurança; enfim, uma sexualidade que eterniza o status quo, contrariando seu poder de transgredi-lo. Me assusta também como ainda vivemos de maneira predominantemente racional. Por mais que se pregue uma concepção holística de ser humano nos modelos de saúde vigentes, ainda se lida com o humano de maneira terrivelmente fragmentada. Uma paciente relatava que se via como alguém muito emocional, ao mesmo tempo em que passava a sessão inteira dando explicações e causas para sua impulsividade e desatenção. “Você acha mesmo que você é tão emocional? A sua fala até agora não contemplou nenhum sentimento seu. Apenas explicações sobre porque você é como é.” Ao refletir com ela que sentimento não se contempla só com a fala (racional), mas também (e, às vezes, principalmente) com o silêncio, ela começou a ser mais honesta consigo mesma, admitindo o quanto foge de seus sentimentos e o quanto isso tem contribuído para sua depressão.

É frequente as pessoas acharem que são muito emocionais só porque estão sofrendo ou tendo crises de ansiedade. Parte-se de um conceito retrógrado, ainda impregnado no imaginário social pós-moderno, que ter crises psicológicas é ser muito emocional – ou seja, desassociado do “equilíbrio” (vulgo: racionalidade) que se valoriza socialmente. A verdade é que usamos a razão para evitar e rechaçar o contato com os sentimentos, apoiando-nos em abstrações acerca de nós mesmos que não só não nos trazem clareza de quem somos, como também nos rouba a vitalidade de nossas escolhas e relações. Logo, “justamente por enredar-se em abstrações, o indivíduo se torna engolfado na mais profunda solidão” (Buber, 2012, p. 123). Por que insistimos em perpetuar concepções genéricas e socialmente aceitas sobre as experiências humanas? Por que reproduzimos as mesmas justificativas e racionalizações que, quando crianças, ouvimos os adultos dar para seus comportamentos? Porque a adequação ao discurso social e à cultura de pensamento nos dá um falso senso de pertencimento. Dizemos que somos únicos, mas mostramos com nosso racionalismo que não queremos nos diferenciar do que todo mundo já pensa, diz e faz. Não queremos sacrificar discursos e comportamentos aprendidos em prol de sermos mais autênticos e maduros, pois ambas as qualidades exigem o preço da solidão. Perls (1977) me confirma disso ao apontar que para não assumir a responsabilidade pela pessoa adulta que é, a pessoa racionaliza, apega-se a memórias de infância e à imagem de que é uma criança. “Porque crescer significa estar só, e estar só é o pré-requisito para a maturidade e o contato” (p. 209). Ao passo em que a solidão faz parte da existência, temos nos submetido a uma solidão patológica por rejeitar as mortes necessárias para nos tornarmos quem de fato somos. Mortes de conceitos errados, de valores desatualizados, de expectativas injustas e de relações adoecedoras. Morte daquilo que pensamos que somos e das explicações que sempre nos demos, a fim de enxergarmos quem somos também em nossa corporeidade, sensualidade e espiritualidade. Conhecer-se genuinamente e realizar-se como pessoa envolve tanto o contato com o terreno ora fértil, ora inóspito das relações quanto a retirada para o lugar solitário da autocontemplação. Quem nega a solidão torna-se incapaz de se orientar no tempo e no espaço da própria vida e, consequentemente, de estabelecer uma organização da própria personalidade. A solidão é o momento de sentir, de contemplar e de decifrar aquilo que sutilmente clama por compreensão dentro de nós. Negar-se ao encontro com a própria solidão é a maneira mais trágica de eternizá-la. Aceitá-la e apreciá-la coloca-nos em contato com a grandeza da vida.

REFERÊNCIAS Buber, M. (2012). Sobre comunidade. São Paulo: Perspectiva. Hellinger, B. & Hövel, G. ten. (2001). Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Cutrix. Perls, F. S. (1977). Gestalt-terapia explicada. São Paulo: Summus. Pinto, E. B. (2021). Dialogar com a ansiedade: uma vereda para o cuidado. São Paulo: Summus. Wheeler, G. (1994). Compulsion and Curiosity: a Gestalt-Approach to Obsessive-Compulsive Disorder. British Gestalt Journal, 3(1), pp. 15-21.

Pedro Paulo Coelho (@pedropaulocoelhoo)

Psicólogo, Gestalt-terapeuta, palestrante e gago incurável.

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