Ouvir não significa julgar
A escuta como ferramenta de comando, prevenção e gestão em segurança pública
A rotina de quem atua na segurança pública é marcada por decisões rápidas, situações de risco e interações humanas em constante tensão. Nesse contexto, a escuta torna-se uma das competências mais valiosas do profissional e do gestor. No entanto, escutar verdadeiramente é muito diferente de julgar.
Julgar é reagir a partir de crenças, impressões ou preconceitos. Ouvir, ao contrário, é compreender antes de concluir.
1. O desafio de escutar em ambientes hierarquizados
A estrutura hierárquica e disciplinar das forças de segurança tende a valorizar a fala do comando e a execução da ordem. Esse modelo, embora essencial à operacionalidade, pode reduzir o espaço para a escuta autêntica dentro das equipes e na relação com a sociedade.
Escutar, nesse cenário, exige esforço consciente:
- ouvir sem interpretar imediatamente;
- observar o comportamento antes de reagir;
- sustentar o silêncio e permitir que o outro se expresse até o fim.
Carl Rogers, um dos principais teóricos da psicologia humanista, descreveu a escuta empática como uma disposição interna para compreender o outro a partir do seu próprio ponto de vista, e não a partir das lentes de quem escuta. Essa postura é essencial para qualquer liderança que deseje compreender as causas — e não apenas os efeitos — de um comportamento.
2. O julgamento como ruído na comunicação
O julgamento é um dos maiores inimigos da comunicação eficaz. Ele distorce o que é ouvido e interfere na tomada de decisão. Em contextos de alta pressão, como operações policiais, o julgamento precipitado pode significar a diferença entre uma intervenção adequada e um conflito desnecessário.
A neuropsicologia demonstra que o cérebro humano tende a preencher lacunas de informação com base em experiências prévias (Kahneman, 2011). Isso gera o chamado viés de confirmação — tendência de interpretar os fatos de modo a reforçar o que já acreditamos.
Assim, quando um agente ou gestor julga antes de ouvir, deixa de perceber a realidade como ela é e passa a agir guiado por expectativas e não por dados concretos.
Exemplo prático:
Um subordinado parece resistente a uma nova orientação. O gestor, se julgar rapidamente (“ele é indisciplinado”), pode reagir com punição. Mas se escutar com atenção, talvez perceba que há insegurança ou falta de clareza na ordem. Escutar muda a intervenção — e preserva o vínculo funcional.
3. A escuta como ferramenta de gestão e de comando
Em segurança pública, escutar sem julgar é um ato de comando inteligente. Permite que o gestor compreenda as dinâmicas humanas que sustentam a eficiência da equipe e as reações emocionais diante do risco.
Uma liderança que escuta:
- Identifica sinais precoces de desgaste, desmotivação e conflito.
- Estimula a comunicação ascendente (do agente ao comando).
- Favorece a cultura da confiança e da corresponsabilidade.
Essa postura amplia o controle operacional, pois quanto mais os agentes se sentem escutados, mais abertos estão a seguir orientações e a comunicar informações críticas.
Escutar, portanto, não é abdicar da autoridade — é fortalecer a legitimidade do comando por meio da compreensão.
4. Escutar sem julgar: uma prática de inteligência emocional
Segundo Daniel Goleman (1995), a escuta é parte central da inteligência emocional, que integra autoconsciência, autorregulação e empatia.
No cotidiano da segurança, isso se traduz em:
- Autoconsciência: perceber quando o julgamento pessoal começa a interferir na análise dos fatos.
- Autorregulação: conter impulsos e opiniões imediatas, permitindo que a fala do outro se complete.
- Empatia técnica: entender que cada pessoa reage de forma diferente ao medo, à pressão ou à autoridade.
Escutar sem julgar não é um ato passivo. É uma postura ativa e disciplinada, que exige controle emocional e foco. Quando o profissional se dispõe a compreender antes de interpretar, ele amplia sua visão de cenário e reduz erros de avaliação.
5. A escuta aplicada às relações internas e externas
Dentro das corporações, a escuta sem julgamento melhora a qualidade da comunicação entre setores e hierarquias. Ela evita mal-entendidos, reforça o espírito de corpo e fortalece o clima institucional.
Nas relações com a comunidade, essa mesma postura é decisiva para a mediação de conflitos. O cidadão que se sente escutado tende a colaborar e se acalmar.
O ato de escutar — com atenção, neutralidade e respeito — diminui a resistência e aumenta a autoridade percebida do agente público.
6. Procedimentos práticos para escutar sem julgar
- Sustentar o silêncio: não interrompa o interlocutor até que ele conclua sua fala.
- Separar fatos de interpretações: registre o que foi dito e só depois formule conclusões.
- Observar o corpo: posturas, respiração e expressões faciais complementam o discurso verbal.
- Evitar rótulos: palavras como “difícil”, “problemático” ou “imprudente” bloqueiam a compreensão.
- Reformular para confirmar entendimento: “Entendi que você se sentiu inseguro ao executar a tarefa, é isso?”
- Treinar a escuta em situações de baixa pressão: quanto mais praticada em momentos tranquilos, mais eficaz será em momentos críticos.
7. Conclusão: escutar é proteger
A escuta verdadeira é uma forma de prevenção. Previne o erro, o conflito e o adoecimento emocional.
Ouvir não significa concordar, e muito menos julgar. Significa reconhecer que a comunicação é um processo de entendimento mútuo — e que o julgamento, quando antecipado, fecha portas.
No comando e na atuação em segurança pública, escutar é uma estratégia de inteligência e de cuidado: com a equipe, com a sociedade e consigo mesmo.
“Escutar não é renunciar à autoridade. É exercê-la com consciência.”
— Dr. Danilo Suassuna, psicólogo e pesquisador em psicologia e educação.



