Escutar não renunciar

  • post publicado em 30/10/25 às 13:59 PM
  • Tempo estimado de leitura: 4 minutos

 

Ouvir não significa julgar

A escuta como ferramenta de comando, prevenção e gestão em segurança pública

A rotina de quem atua na segurança pública é marcada por decisões rápidas, situações de risco e interações humanas em constante tensão. Nesse contexto, a escuta torna-se uma das competências mais valiosas do profissional e do gestor. No entanto, escutar verdadeiramente é muito diferente de julgar.

Julgar é reagir a partir de crenças, impressões ou preconceitos. Ouvir, ao contrário, é compreender antes de concluir.


1. O desafio de escutar em ambientes hierarquizados

A estrutura hierárquica e disciplinar das forças de segurança tende a valorizar a fala do comando e a execução da ordem. Esse modelo, embora essencial à operacionalidade, pode reduzir o espaço para a escuta autêntica dentro das equipes e na relação com a sociedade.

Escutar, nesse cenário, exige esforço consciente:

  • ouvir sem interpretar imediatamente;
  • observar o comportamento antes de reagir;
  • sustentar o silêncio e permitir que o outro se expresse até o fim.

Carl Rogers, um dos principais teóricos da psicologia humanista, descreveu a escuta empática como uma disposição interna para compreender o outro a partir do seu próprio ponto de vista, e não a partir das lentes de quem escuta. Essa postura é essencial para qualquer liderança que deseje compreender as causas — e não apenas os efeitos — de um comportamento.


2. O julgamento como ruído na comunicação

O julgamento é um dos maiores inimigos da comunicação eficaz. Ele distorce o que é ouvido e interfere na tomada de decisão. Em contextos de alta pressão, como operações policiais, o julgamento precipitado pode significar a diferença entre uma intervenção adequada e um conflito desnecessário.

A neuropsicologia demonstra que o cérebro humano tende a preencher lacunas de informação com base em experiências prévias (Kahneman, 2011). Isso gera o chamado viés de confirmação — tendência de interpretar os fatos de modo a reforçar o que já acreditamos.

Assim, quando um agente ou gestor julga antes de ouvir, deixa de perceber a realidade como ela é e passa a agir guiado por expectativas e não por dados concretos.

Exemplo prático:

Um subordinado parece resistente a uma nova orientação. O gestor, se julgar rapidamente (“ele é indisciplinado”), pode reagir com punição. Mas se escutar com atenção, talvez perceba que há insegurança ou falta de clareza na ordem. Escutar muda a intervenção — e preserva o vínculo funcional.


3. A escuta como ferramenta de gestão e de comando

Em segurança pública, escutar sem julgar é um ato de comando inteligente. Permite que o gestor compreenda as dinâmicas humanas que sustentam a eficiência da equipe e as reações emocionais diante do risco.

Uma liderança que escuta:

  • Identifica sinais precoces de desgaste, desmotivação e conflito.
  • Estimula a comunicação ascendente (do agente ao comando).
  • Favorece a cultura da confiança e da corresponsabilidade.

Essa postura amplia o controle operacional, pois quanto mais os agentes se sentem escutados, mais abertos estão a seguir orientações e a comunicar informações críticas.

Escutar, portanto, não é abdicar da autoridade — é fortalecer a legitimidade do comando por meio da compreensão.


4. Escutar sem julgar: uma prática de inteligência emocional

Segundo Daniel Goleman (1995), a escuta é parte central da inteligência emocional, que integra autoconsciência, autorregulação e empatia.

No cotidiano da segurança, isso se traduz em:

  • Autoconsciência: perceber quando o julgamento pessoal começa a interferir na análise dos fatos.
  • Autorregulação: conter impulsos e opiniões imediatas, permitindo que a fala do outro se complete.
  • Empatia técnica: entender que cada pessoa reage de forma diferente ao medo, à pressão ou à autoridade.

Escutar sem julgar não é um ato passivo. É uma postura ativa e disciplinada, que exige controle emocional e foco. Quando o profissional se dispõe a compreender antes de interpretar, ele amplia sua visão de cenário e reduz erros de avaliação.


5. A escuta aplicada às relações internas e externas

Dentro das corporações, a escuta sem julgamento melhora a qualidade da comunicação entre setores e hierarquias. Ela evita mal-entendidos, reforça o espírito de corpo e fortalece o clima institucional.

Nas relações com a comunidade, essa mesma postura é decisiva para a mediação de conflitos. O cidadão que se sente escutado tende a colaborar e se acalmar.

O ato de escutar — com atenção, neutralidade e respeito — diminui a resistência e aumenta a autoridade percebida do agente público.


6. Procedimentos práticos para escutar sem julgar

  1. Sustentar o silêncio: não interrompa o interlocutor até que ele conclua sua fala.
  2. Separar fatos de interpretações: registre o que foi dito e só depois formule conclusões.
  3. Observar o corpo: posturas, respiração e expressões faciais complementam o discurso verbal.
  4. Evitar rótulos: palavras como “difícil”, “problemático” ou “imprudente” bloqueiam a compreensão.
  5. Reformular para confirmar entendimento: “Entendi que você se sentiu inseguro ao executar a tarefa, é isso?”
  6. Treinar a escuta em situações de baixa pressão: quanto mais praticada em momentos tranquilos, mais eficaz será em momentos críticos.

7. Conclusão: escutar é proteger

A escuta verdadeira é uma forma de prevenção. Previne o erro, o conflito e o adoecimento emocional.

Ouvir não significa concordar, e muito menos julgar. Significa reconhecer que a comunicação é um processo de entendimento mútuo — e que o julgamento, quando antecipado, fecha portas.

No comando e na atuação em segurança pública, escutar é uma estratégia de inteligência e de cuidado: com a equipe, com a sociedade e consigo mesmo.

“Escutar não é renunciar à autoridade. É exercê-la com consciência.”

— Dr. Danilo Suassuna, psicólogo e pesquisador em psicologia e educação.

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Dr. Danilo Suassuna Martins Costa CRP 09/3697 CEO do Instituto suassuna, membro fundador e professor do Instituto Suassuna ; Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás(PUC-GO);

Especialista em Gestalt-terapia, Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008) possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Pós-Doutorando em Educação;

Autor dos livros:

  • Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico;
  • Renadi - Rede de atenção a pessoa idosa;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia; Teoria e Prática;
  • Supervisão em Gestalt-Terapia: O cuidado como figura;

Organizador do livro Supervisão em Gestaltt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia; Professor na FacCidade.

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