

Borderline não é drama: quando a música acerta na dor, mas erra no diagnóstico
INTRODUÇÃO
No início de 2025, a dupla sertaneja Maiara e Maraísa lançou a música “Borderline”, que rapidamente se tornou tema de conversas, memes e discussões nas redes sociais. A letra expressa sentimentos de amor intenso, medo de abandono, impulsividade emocional — elementos que, curiosamente (e não por acaso), fazem parte da vivência de quem convive com o transtorno de personalidade borderline. Mas ao transformar essa experiência clínica em recurso poético, a canção reacende um debate necessário: o uso impreciso de termos da saúde mental na cultura pop contribui para a conscientização ou reforça estigmas?
Este artigo busca responder a essa pergunta a partir de um olhar fundamentado na psicologia clínica e na ética profissional. Vamos entender o que é, de fato, o transtorno de personalidade borderline, por que sua banalização é preocupante, e como transformar cultura em cuidado — sem perder o poder de escuta que a arte também tem.
BORDERLINE: O QUE É, DE FATO?
O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) é uma condição clínica descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), caracterizada por um padrão persistente de instabilidade nas relações interpessoais, na autoimagem e nos afetos, além de impulsividade acentuada.
Entre os critérios diagnósticos estão:
- Medo intenso de abandono, real ou imaginado
- Relacionamentos instáveis e intensos
- Identidade instável (mudanças drásticas de autoimagem)
- Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente autodestrutivas (gastos, sexo, abuso de substâncias etc.)
- Comportamentos suicidas ou automutilação
- Instabilidade afetiva significativa
- Sentimentos crônicos de vazio
- Raiva intensa ou inapropriada
- Ideação paranoide ou dissociação transitória em situações de estresse
Estudos como os de Gunderson (2011), Linehan (1993) e Kernberg (1984) aprofundaram a compreensão clínica e terapêutica do TPB. Importante destacar: trata-se de um diagnóstico sério, com sofrimento psíquico profundo e risco real de suicídio. É muito mais que intensidade emocional — é desorganização interna.
O USO DE TERMOS CLÍNICOS NA MÚSICA: A CULTURA QUE PSICOPATOLOGIZA
A arte sempre foi espaço de expressão das emoções humanas. A dor, a paixão, a perda, o desespero — tudo cabe na canção. No entanto, quando um termo técnico da psicologia é utilizado fora de seu contexto clínico, como recurso estético, há riscos.
Na música “Borderline”, as artistas cantam:
“Me chama de doida / Me diz que é drama / Mas você não sabe o que se passa aqui dentro”.
Esse trecho traduz bem a vivência de muitas pessoas que enfrentam o transtorno: julgadas como “dramáticas”, incompreendidas, marginalizadas. No entanto, o uso do nome de um transtorno como sinônimo de sofrimento amoroso generalizado contribui para confundir o público sobre o que realmente é borderline.
O resultado? Duas consequências preocupantes:
- Banalização do diagnóstico, fazendo com que qualquer pessoa emocionalmente intensa seja rotulada;
- Estigmatização de quem realmente tem o transtorno, ao associar o TPB a comportamentos exagerados, perigosos ou manipuladores, como muitos comentários nas redes sociais sugeriram após o lançamento.
A DIFERENÇA ENTRE SENTIR DEMAIS E TER UM TRANSTORNO
É absolutamente humano viver momentos de instabilidade emocional em um relacionamento. Amar demais, sentir ciúmes, reagir de forma intensa a términos ou rejeições não são, por si só, sinais de transtorno.
Como aponta Marsha Linehan, criadora da Terapia Comportamental Dialética (DBT), um dos métodos mais eficazes no tratamento do TPB:
“As emoções não são o problema. O problema está na forma como lidamos com elas.”
A fronteira entre intensidade emocional e transtorno está na persistência, na rigidez e no prejuízo funcional. Quando essas vivências se tornam recorrentes, causam sofrimento significativo e dificultam a vida da pessoa nos seus relacionamentos, trabalho e autoestima, é hora de procurar ajuda profissional.
O PERIGO DE DIAGNOSTICAR COM OUVINTE: A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA
A cultura pop tem o poder de nomear sentimentos. Isso é valioso. Mas há uma linha tênue entre nomear e rotular. O uso crescente de termos como “ansioso”, “depressivo”, “bipolar” e “borderline” em músicas, séries e redes sociais muitas vezes escapa do campo clínico e entra no vocabulário cotidiano como rótulo emocional.
Segundo o psicólogo James Hillman, em “O Código do Ser” (1996), o risco da psicologização exagerada da vida é que a narrativa interior deixa de ser poética e passa a ser patologizante. Ou seja: sentimos e já queremos um nome clínico para o que vivemos. Esse movimento pode tanto silenciar a complexidade do humano quanto fomentar diagnósticos apressados, especialmente em adolescentes e jovens adultos.
REPRESENTAÇÃO E CUIDADO: A ARTE COMO PONTE, NÃO COMO DIAGNÓSTICO
Dito isso, não se trata de censurar a arte. Muito pelo contrário. Se a música emociona e toca, é porque fala de algo verdadeiro. E essa verdade — o medo do abandono, o impulso, a dor de se sentir incompreendido — está presente tanto na experiência de quem tem TPB quanto na de quem apenas viveu um relacionamento difícil.
O ponto é: como psicólogos, temos a responsabilidade de transformar essas expressões culturais em oportunidades de escuta e esclarecimento. De dizer: “o que você sente importa, e pode ser cuidado”.
Quando a música abre a porta, a psicologia precisa estar lá para acolher.
QUANDO PROCURAR AJUDA: SINAIS DE ALERTA PARA O TRANSTORNO BORDERLINE
Nem todo sofrimento precisa de diagnóstico. Mas todo sofrimento merece cuidado. Por isso, listamos aqui sinais que indicam a necessidade de buscar ajuda:
- Você vive relações intensas, com ciclos de idealização e desvalorização
- Sente que sua identidade muda com frequência
- Experimenta episódios de raiva, desespero ou vazio que parecem incontroláveis
- Tem comportamentos autodestrutivos ou ideias suicidas
- Tem medo intenso de ser abandonado, mesmo sem motivo aparente
- Sente que suas emoções “tomam conta” e você não tem controle sobre elas
Nestes casos, procurar um psicólogo ou psiquiatra é um gesto de responsabilidade e amor-próprio. Há tratamentos eficazes e caminhos possíveis. Uma das possibilidades é a busca pelo nosso projeto todos cuidados!
7. A PALAVRA DO PROFISSIONAL: DR. DANILO SUASSUNA COMENTA
“A arte tem o poder de abrir conversa. E a psicologia, de aprofundar. Quando uma música como ‘Borderline’ viraliza, temos uma chance de transformar curiosidade em cuidado. Mas para isso, precisamos sair da lógica do rótulo e entrar na escuta real. Nem tudo que dói é transtorno, mas toda dor precisa ser acolhida.”
Como psicólogo, doutor e pós-doutor em Psicologia e Educação, venho reafirmar a importância de divulgar conteúdos sérios sobre saúde mental, que dialoguem com a cultura, mas sem abrir mão da responsabilidade ética com o sofrimento psíquico das pessoas.
8. DO CONSULTÓRIO PARA O MUNDO: O PAPEL DOS PSICÓLOGOS NA CULTURA DIGITAL
Vivemos um tempo em que o psicólogo também é comunicador. A internet transformou a prática clínica em um campo ampliado de atuação. Por isso, é papel dos profissionais:
- Produzirem conteúdos informativos de qualidade
- Corrigirem desinformações sem arrogância
- Aproximarem a psicologia das dores reais das pessoas
- Reforçarem a diferença entre sofrimento subjetivo e transtorno diagnosticável
O Instituto Suassuna tem se dedicado a formar psicólogos ATUANTES — que não apenas saibam o que é borderline, mas que saibam também comunicar isso com clareza, sem cair no reducionismo.
CONCLUSÃO: ENTRE O DRAMA E O DIAGNÓSTICO, FICA A DOR DE QUEM PRECISA SER OUVIDO
A música “Borderline” de Maiara e Maraísa escancara uma realidade: as pessoas estão sofrendo. Elas estão tentando dar nome ao que sentem. E a cultura pop oferece um espelho — muitas vezes distorcido, mas ainda assim um espelho.
Como profissionais da saúde mental, não cabe a nós invalidar a dor alheia, mas sim traduzi-la com mais precisão, ética e empatia. Que cada música que toque a ferida seja também uma oportunidade de falar sobre cuidado.
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