As dores que não sofremos sozinhos
A primeira grande perda de nossa existência é o nascimento…De lá pra cá não paramos mais de perder, e de ganhar também. Perdemos ao nascer o conforto de nossa primeira morada, um útero quentinho e confortável com alimentação e oxigênio disponível para nossas mais elementares necessidades de sobrevivência, e ao nascermos, somos arremessados a um meio ambiente nem sempre agradável.
Perde-se dentes, cabelo, saúde e sossego. Perdemos a condição de filhos únicos, coleguinhas da escola, avós, animais de estimação, e todas as dores decorrentes dos lutos. Mas o que é o luto senão qualquer perda significativa ao longo de nosso ciclo vital. Qualquer. Tudo aquilo que é importante pra vida da gente, que temos afeto, apego, paixão…pode nos causar dor quando a vida arrebatada de adversidades nos toma tudo aquilo que acreditamos ter posse eterna.
E as dores do amor, então, cantada, poetizada, falada em arte e notas de violão que quando ouvidas tocam nossa memória afetiva nos fazendo chorar ao recordar um amor frustrado, alguém que nos deixou ou a paixão platônica que desejamos. Nada mais humano que o amor, presente em todos nós, independente de raça, gênero, sexo, cultura, condições econômicas, idade ou tempo.
E assim, nasce uma estrela, menina sensível e extremamente observadora das dores humanas, que ainda adolescente começou a verbalizar sentimentos universais que nos rasgam por dentro, nos enlouquecem, adoecem e também nos salva do tédio, da mesmice da vida cotidiana de nascer, crescer e morrer. E é essa vulnerabilidade humana que conecta Marília Mendonça a todos nós. A partir daí começamos a compreender o luto coletivo que ela nos deixou.
A perda de uma pessoa famosa provoca uma dor coletiva, decorrente de representação social do que somos e do que vivenciamos enquanto grupo. Marília era “gente como a gente” e isso gera identificação, quase uma intimidade entre o “nós e o ela”. Além do mais, as mortes inesperadas, decorrentes de tragédias nos impactam ainda mais e nos convidam a refletir sobre nossa própria finitude, nossas vidas opacas, sem brilhos e com pouca intensidade, causando incômodo, que quando refletidos de maneira saudável pode nos reconectar a uma vida mais rica de experiências e significados.
Morre com o ídolo a filha, a mãe, esposa, irmã, cidadã e com todos esses papéis, um pouquinho de cada um de nós que também desempenha múltiplos papéis sociais que deixa um vazio na vida de tantos outros seres. Alguns irão ainda, reviver lutos do passado, como se nunca tivesse passado, e ainda há aqueles a quem ainda não conseguem compreender tanta comoção, nem todos os lutos são válidos para quem ainda não se deu conta.
E como profissional da saúde mental deixo aqui a esperança de que somos capazes de suportar nossas dores, desde que a reconhecemos como parte de nosso caminho existencial, e não de todo um percurso. Que podemos chorar e gritar e correr, mas ainda sim enxergar outros significados pra viver, “extraindo rosas de pedras’ como fez Karina Fukumitsu. E se sozinho não for capaz, que a dor não seja paralisante, e que tenhamos a coragem de procurar ajuda profissional, o importante é superar.
Sigrid Duarte, CRP-20/951, psicóloga, mestre em psicologia(UFAM), pós graduanda em suicídio e luto(-Instituto Suassuna GO), professora e supervisora clínica (Faculdade Cathedral da Amazônia.)