ANSIEDADE E GESTALT-TERAPIA: UMA LEITURA COMPLETA DO FENÔMENO ANSIOGENO, DO SELF E DO CAMPO
1. Introdução: por que a ansiedade é o afeto da nossa época?
A ansiedade tornou-se, para muitos autores, “o afeto hegemônico do século XXI”.
As estatísticas epidemiológicas da World Health Organization (2023) indicam que mais de 301 milhões de pessoas convivem com transtornos ansiosos. O Brasil figura repetidamente entre as maiores prevalências do mundo, segundo o estudo Global Burden of Disease.
Porém, antes de ser um fenômeno estatístico, a ansiedade é uma experiência corporificada. Ela pertence à nossa história evolutiva (mobilização diante do perigo), à nossa cultura (sociedade da performance) e à nossa biografia (histórias traumáticas, vínculos, expectativas). A Gestalt-terapia permite uma leitura especialmente profunda dessa experiência porque não parte do sintoma, mas do modo como a pessoa está no mundo.
Como lembra Fritz Perls:
“O que está acontecendo agora é o que importa.”
— Perls, 1969, p. 1
A ansiedade não é vista como patologia isolada, mas como um modo de existir que se expressa na fronteira de contato.
2. O que é ansiedade para a Gestalt-terapia?
2.1. A definição clássica de Perls: ansiedade como lacuna temporal
A frase mais repetida de Perls sobre ansiedade é também uma das mais profundas:
“Ansiedade é a lacuna entre o agora e o depois.”
— F. Perls, 1969, p. 22
Essa formulação, aparentemente simples, descreve um fenômeno humano universal: a excitação que emerge para mover a pessoa em direção a algo fica presa num “futuro imaginado”.
Essa energia represada cria tensão, inquietação, ruminação, medo e paralisação.
Laura Perls aprofunda esse aspecto fenomenológico:
“A ansiedade é a excitação que não encontra forma.”
— L. Perls, 1992, p. 41
Ou seja, a ansiedade aparece quando o impulso, em vez de se transformar em ação, fica suspenso entre intenção e realização.
2.2. Yontef: ansiedade como perturbação da fronteira de contato
Gary Yontef, em Awareness, Dialogue and Process, explica:
“A ansiedade é uma perturbação que interrompe o fluxo de contato entre organismo e ambiente.”
— Yontef, 1993, p. 127
A fronteira de contato é o lugar onde “eu encontro o mundo”. Quando ela se torna rígida, borrada ou instável, o self perde fluidez. A ansiedade é o sintoma dessa perda.
2.3. Zinker: ansiedade como fronteira endurecida
Joseph Zinker descreve nos anos 1970 algo muito atual:
“A fronteira ansiosa é uma fronteira que perdeu elasticidade.”
— Zinker, 1977, p. 84
Um self saudável é elástico: aproxima-se e se afasta, diz “sim” e “não”, negocia, cria.
O self ansioso, ao contrário, reage de modo rígido, hipercontrolado ou totalmente colapsado.
2.4. Spagnuolo Lobb: ansiedade como des-sintonia relacional
Margherita Spagnuolo Lobb, uma das maiores referências vivas da Gestalt contemporânea, descreve:
“A ansiedade é um esforço do self para se ajustar a um ambiente vivido como imprevisível.”
— Spagnuolo Lobb, 2018, p. 67
Ou seja, ela é uma tentativa de cuidado, mesmo que custosa.
3. O sintoma como processo: a função da ansiedade
Ao invés de combater a ansiedade como “erro”, a Gestalt-terapia pergunta:
Para que esta ansiedade está servindo?
Que ajuste criativo ela representa?
Roberto Zachello, em texto fundamental, sintetiza:
“O sintoma é a solução criativa encontrada quando o campo não oferece recursos.”
— Zachello, 2004, p. 88
Isso significa que:
- a ruminação pode proteger da dor de fazer escolhas,
- o controle pode proteger da sensação de desamparo,
- a evitação pode proteger da possibilidade de rejeição,
- a tensão corporal pode proteger do contato com emoções intensas.
A ansiedade raramente é um “problema isolado”: ela é uma estratégia do organismo para se autossustentar em contextos vividos como ameaçadores.
4. O corpo ansioso: diálogo entre Gestalt e neurociência
A Gestalt sempre sustentou a unidade corpo-mente.
Perls afirmava:
“O corpo sabe.”
— Perls, 1969
Hoje, a neurociência confirma vários pontos dessa visão.
4.1. Sistema nervoso autônomo e ameaça
Pesquisas de LeDoux (2020) demonstram que a amígdala reage automaticamente a sinais de ameaça, mesmo antes da percepção consciente. Isso explica por que o ansioso “sente no corpo” antes de “entender na mente”.
4.2. Interocepção
Estudos de Farb (2023) mostram que maior consciência interoceptiva — percepção do interior do corpo — está associada a menor reatividade ansiosa.
Essa é a base do trabalho gestáltico de voltar ao corpo, às sensações, ao chão, ao ritmo.
4.3. Teoria Polivagal
Stephen Porges (2018) propõe que a regulação emocional depende da sensação de segurança fisiológica.
Gestalt-terapeutas fazem isso intuitivamente há décadas: presença, voz, ritmo, postura, respiração.
Zinker, sem neurobiologia, já dizia:
“A presença do terapeuta regula a excitação do paciente.”
— Zinker, 1977
5. Ansiedade como fenômeno de campo
A Gestalt-terapia afirma que não há sintoma fora do campo.
Yontef é categórico:
“O self não é algo dentro da pessoa, mas um processo que emerge no campo organismo-ambiente.”
— Yontef, 1993, p. 201
Portanto, ansiedade não é apenas:
- traço de personalidade,
- disfunção neuroquímica,
- fragilidade emocional.
É uma expressão relacional.
5.1. Pressões contemporâneas que modulam ansiedade
Talvez nunca vivemos:
- tanta exposição,
- tanta comparação social,
- tanta velocidade,
- tanta incerteza.
Spagnuolo Lobb (2021) descreve que vivemos numa “sociedade hiper-excitada”, onde o ritmo externo excede a capacidade interna de processar experiência. Isso gera self fragmentado e fronteira instável — terreno fértil para ansiedade.
5.2. Psicologia do desenvolvimento e campo familiar
Autores como Sroufe (2016) e Siegel (2020) demonstram que crianças expostas a:
- vínculos inseguros,
- ambientes imprevisíveis,
- transições abruptas,
- expectativas rígidas,
desenvolvem respostas ansiosas mais facilmente.
A Gestalt sempre reconheceu isso: o self se forma no campo.
6. A ansiedade na fronteira de contato: mecanismos de interrupção
6.1. Retroflexão
Perls define:
“Retroflexão é quando faço a mim aquilo que gostaria de fazer ao ambiente.”
— Perls, 1973, p. 122
A retroflexão ansiosa aparece como:
- autocobrança,
- tensão muscular crônica,
- autocrítica,
- contenção de impulsos.
6.2. Projeção
Atribuir ao outro:
“Eles vão me julgar”, “vão me rejeitar”.
6.3. Introjeção
Crenças rígidas internalizadas:
- “Tenho que ser perfeito.”
- “Não posso errar.”
- “Preciso agradar.”
Zinker aponta:
“Introjetos rígidos alimentam ansiedade porque impedem novos ajustes criativos.”
— Zinker, 1977, p. 63
6.4. Confluência
Medo de desagradar ou perder o outro.
Fusão emocional que torna impossível relaxar.
Polster & Polster afirmam:
“A confluência elimina diferenças e empobrece o contato.”
— Polster & Polster, 1973, p. 49
7. A ansiedade no ciclo de contato
O ciclo de contato é um mapa fenomenológico poderoso.
7.1. No pré-contato
O ansioso vive hiperantecipação.
É o “futuro catastrófico”.
7.2. No contato
O self perde discriminação; tudo parece ameaça.
7.3. No contato final
Paralisação, dúvida, confusão, medo.
7.4. No pós-contato
Culpa, vergonha, ruminação.
Polster & Polster lembram:
“A vitalidade do self depende da fluidez do contato.”
— Polster & Polster, 1973, p. 44
8. O processo terapêutico: como a Gestalt trata ansiedade?
8.1. Awareness como pilar
A terapia é um treino de presença.
Perls diz:
“A awareness é curativa em si mesma.”
— Perls, 1969, p. 15
8.2. Trabalho com o corpo
Sentir pés, apoiar respiração, nomear tensões.
Zinker reforça:
“O corpo é o primeiro lugar onde a ausência de contato aparece.”
— Zinker, 1977
8.3. Experimentos
Experimentar não é “técnica”, é revelação.
“O experimento revela o óbvio não notado.”
— Zinker, 1977, p. 99
Exemplos:
- sustentar olhar,
- interromper controle,
- dizer “não”,
- trabalhar polaridades,
- explorar a fantasia catastrófica,
- aproximar e afastar-se do terapeuta.
8.4. Ritmo e sintonização
Spagnuolo Lobb:
“O terapeuta ajusta-se ao ritmo do cliente para reconstituir sua vitalidade.”
— Spagnuolo Lobb, 2013, p. 143
8.5. Construção de suporte
Sem suporte, a ansiedade domina.
Yontef ensina:
“Suporte é a base da liberdade.”
— Yontef, 1993, p. 247
9. Evidências científicas que sustentam a Gestalt no tratamento da ansiedade
9.1. Terapias humanistas-experienciais
Elliott et al. (2013), Journal of Clinical Psychology:
Terapias humanistas-experiências têm efeito robusto para ansiedade.
9.2. Neurociência da regulação emocional
Porges (2018): Terapia é co-regulação fisiológica.
9.3. Pesquisas em interocepção
Farb (2023): Aumento de consciência corporal = redução de ansiedade.
9.4. Psicologia do desenvolvimento
Sroufe (2016): Ambientes inseguros → respostas ansiosas crônicas.
10. Conclusão: o caminho gestaltista para transformação da ansiedade
A Gestalt-terapia não busca “cura rápida” nem “eliminação de sintomas”.
Ela busca inteireza, presença, contato, ritmo, suporte, criatividade.
A ansiedade é vista como:
- sinal,
- ajuste,
- pedido de reorganização,
- expressão da relação com o mundo.
Como Perls conclui:
“Não tente ser sem ansiedade. Tente ser inteiro.”
— Perls, 1969
O Dr. Danilo Suassuna — como psicólogo, doutor — ressalta frequentemente que compreender a ansiedade pela Gestalt significa dar dignidade à experiência humana, reconhecendo no sintoma não um defeito, mas um convite à reorganização do self.



