ANÁLISE DOS FILMES “DIVERTIDAMENTE” E “DIVERTIDAMENTE 2”

  • post publicado em 05/07/24 às 15:34 PM
  • Tempo estimado de leitura: 5 minutos

 

(Contém spoilers)

Quando uma obra capta a essência do espírito humano junto com suas mais profundas complexidades utilizando-se de elementos simples e universalmente identificáveis, sabemos que estamos diante de um clássico em potencial. Ainda cabe ao tempo confirmar o status de clássico do primeiro Divertidamente (Inside Out, 2015, Walt Disney Studios Motion Pictures), mas é inegável que o décimo quinto longa produzido pela Pixar há quase dez anos foi não só um fenômeno de crítica e bilheteria, mas uma marca no imaginário social acerca de como vivemos e lidamos com nossas emoções.

Antes de assistir ao segundo longa da franquia (lançado recentemente no Brasil), reassisti ao primeiro com o coração preparado para me emocionar. Seu tema me lembra muito do que ando lendo em O Lado Doce da Melancolia (Bittersweet, 2022, Sextante) da americana Susan Cain. Neste livro, a própria autora conta sobre conversas que teve com Pete Docter – diretor de Divertidamente e um de seus roteiristas. Antes de começar a produção, Docter ficou apreensivo por introduzir uma personagem como a Tristeza, que poderia ser sem graça e um tanto intragável ao público. Teve dificuldades para iniciar a animação, vendo que o terceiro ato (no qual o Medo, e não a Tristeza, seria a emoção a acompanhar a Alegria) não funcionava e que o filme seria um fracasso. Questionou sua competência como cineasta, passando a achar que seus primeiros êxitos foram golpes de sorte. Começou a viver uma profunda tristeza por acreditar que não mais faria parte da comunidade de profissionais revolucionários da Pixar que tanto amava. Nesse processo, percebeu que o verdadeiro propósito das emoções é de nos conectar uns aos outros; e de todas elas, a que mais nos liga às outras pessoas é a tristeza.

Na minha opinião, Docter traduziu perfeitamente esta descoberta em Divertidamente. Riley é uma menina de 11 anos que se muda com os pais de sua cidade natal no estado de Minnesota para São Francisco, deixando para trás toda uma vida repleta de felicidade e segurança. Desde a entrada em sua nova casa, repugna cada aspecto asqueroso e desagradável da mudança, tentando mesmo assim manter-se entusiasmada com as possibilidades de seu novo lar. Uma fala da mãe acaba influenciando-a a esconder seus sentimentos para tornar aquele processo mais fácil para todos. A mãe a agradece por continuar a “menina feliz” no meio de toda essa confusão e ainda acrescenta: “se você e eu pudermos continuar sorrindo, seria uma grande ajuda. Nós podemos fazer isso por ele (o pai), não podemos?” (Eu espero do fundo do coração que os pais que assistirem isso repensem algumas de suas falas aos filhos.)

Riley, então, abraça a missão de continuar expressando o sentimento que acredita que os pais querem que tenha, e o seu mundo psicológico começa a literalmente desmoronar, conforme acompanhamos na dimensão paralela que a animação usa para nos mostrar como funcionam seus sentimentos. Nesse mundo, temos: a Alegria (primeiro sentimento a surgir e o que lidera e administra as reações emocionais de Riley); a Tristeza (surgida quase junto com a Alegria e sempre uma pedra no sapato desta); a Raiva; o Medo; e o Nojo, todos com suas funções esclarecidas com bastante eficiência.

Exceto a Tristeza. Acreditando ser seu dever manter a menina feliz o tempo todo e a qualquer custo, a Alegria se esforça ao máximo para afastar a Tristeza das reações e memórias de Riley. Ainda que acredite ser nobre e necessária sua missão, percebe-se claramente que a Alegria só não quer perder sua relevância. A trama, então, faz um caminho engenhoso, criativo e muito tocante a fim de que a Alegria reconheça a importância da Tristeza e entenda que nos momentos de fracasso, transição, perdas ou solidão, é a expressão da tristeza que faz Riley ser ajudada e acolhida pelos pais e amigos. É lindo o momento final em que a Alegria entrega o protagonismo à Tristeza, deixando com que Riley chore e assuma seu sofrimento aos pais, que a confortam e compartilham de seu sofrimento. Mais lindo ainda é quando a Tristeza divide o momento com a Alegria, fazendo com que Riley sinta pela primeira vez a sensação agridoce de ser confortada amorosamente em meio a uma grande dor.

E, então, falemos de Divertidamente 2 (Inside Out 2, 2024, Walt Disney Studios Motion Pictures), no qual somos introduzidos a uma Riley recém chegada à puberdade e às novas emoções que farão parte de seu desenvolvimento e personalidade. Entram em cena agora a Ansiedade, sempre preocupada em fazer o máximo de projeções possíveis para o futuro de Riley a fim de prepará-la tanto para as possibilidades desejadas quanto para (e principalmente) as possibilidades temidas; a Inveja, com olhos grandes e cheios de encanto para as aspectos que admira em outras pessoas e que deseja para si; a Vergonha, um ursão de moletom cujo capuz nunca é grande o suficiente quando quer se esconder; e o Tédio, a epítome do adolescente que acha que é virtude ser cético, indiferente e desempolgado com as coisas. E há também a Nostalgia, que sempre que tenta entrar em cena é rapidamente repelida pelas outras emoções – dando a entender que ainda é cedo demais para Riley se enveredar por esse sentimento.

Lançando uma luz muito interessante e humana sobre nossa tentativa de buscar o pertencimento e evitar a solidão, a sequência de Divertidamente traz uma compreensão bastante correta da ansiedade e de como nós, sob a justificativa de autoproteção, podemos agir de maneira a evitar aspectos naturais da vida e de nossa humanidade dos quais, por mais que tentemos, não temos como fugir. É dramaticamente forte ver como a Ansiedade e as outras novas emoções retiram de Riley seu “senso de eu” até então estabelecido e o substituem por convicções distorcidas da realidade. “Se eu for boa em hockey, não vou ficar sozinha.” “Para ser amiga delas, preciso gostar do que elas gostam.” “Sucesso é tudo na vida”, e assim vai até que um novo e extremamente adoecido senso de eu é estabelecido: “não sou boa o suficiente.”

É realmente genial o retrato que a animação faz da maneira como se chega a tal percepção. Por medo de novamente enfrentar uma dolorosa solidão ao saber que suas melhores amigas iriam para uma outra escola, Riley faz uma sequência de escolhas direcionadas a garantir que ela seja parte de um novo grupo e não se sinta sozinha, ainda que para isso comece a renunciar àquilo que a torna quem ela é. O discurso da Ansiedade é de que “agora temos que fazer uma nova Riley”, sugerindo com isso o desejo de atingir o famoso eu ideal e que a ansiedade parte justamente da consciência de que se está aquém do eu ideal. O momento em que essa consciência se aguça e se torna inevitável é o momento em que Riley experiencia seu primeiro ataque de pânico. A resolução deste acontece quando as emoções antigas de Riley liberam todas as suas memórias reprimidas, as quais vão acrescentando ao seu senso de eu novos aspectos de sua personalidade que, uma vez conscientes, tornam a protagonista mais capaz de se apropriar de si mesma em sua totalidade, sem negligenciar aquilo que imagina que pode aliená-la das outras pessoas.

Há dois caminhos que se pode tomar: o da negação e o da apropriação de si mesmo. Ainda que Divertidamente 2 faça um retrato claro e fidedigno das consequências de ambos os caminhos, em alguns momentos (especialmente no final) suas conclusões soaram didáticas demais para o meu gosto, o que lhe priva do impacto emocional que poderia ter caso optasse por um pouco mais de sutileza. Além disso, esta sequência basicamente repete a jornada do primeiro filme quando coloca mais uma emoção tentando ser soberana em relação às outras sob a justificativa de estar protegendo a Riley, apenas para aprender no final que estava mais atrapalhando que ajudando.

Reconheço, porém, que o que eu chamo de “didático demais” pode ser exatamente o que crianças e adolescentes (e até alguns adultos) de hoje precisam para melhor compreender e acolher suas emoções. Quanto a isso, aplaudo ambos os filmes por contribuírem com tanto fervor e sensibilidade à compreensão que temos de nosso mundo emocional e, principalmente, por revelarem que a tristeza, a ansiedade e o sofrimento em si, quando honestamente sentidos e assumidos, tornam-se preciosa fonte de conexão, de crescimento e de esperança.

Pedro Paulo Coelho Leão da Cunha (CRP 09/10277)

Psicólogo, Gestalt-terapeuta, especialista em atendimento com adolescentes e palestrante sobre saúde existencial.

@pedropaulocoelhoo

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Danilo Suassuna
Danilo Suassuna

Pós doutorando em Educação, Psicoterapeuta há quase 20 anos, é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela PUC-GO. Especialista em Gestalt-terapia pelo ITGT – GO. Foi professor da PUC-GO e do ITGT-GO entre os anos de 2006 e 2011.

É CEO, membro fundador e professor do Instituto Suassuna (IS-GO) e membro do Conselho Consultivo da Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies (RAG), além de consultor Ad – hoc da Revista em Psicologia em Revista (PUC-Minas).

É autor dos livros: – Histórias da Gestalt – terapia no Brasil – Um estudo historiográfico – Organizador do livro Renadi: a experiência do plantar em Goiânia – Organizador do livro Supervisão em Gestalt-Terapia, bem como autor de artigos na área da Psicologia.