Não satisfaz as expectativas do espectador aficcionado por descobrir “quem fez” e “como fez”. Além de thriller, drama de tribunal e drama familiar, “Anatomia de uma Queda” (Anatomie d’une Chute, 2023, Le Pacte) é uma análise fria e controlada sobre a impossibilidade (não assumida) de se ter certeza sobre os fatos e, principalmente, sobre as motivações das pessoas.
Daniel, de 10 anos e parcialmente cego devido a um acidente não especificado, acha o pai caído e morto em frente à casa onde moram, desencadeando processos investigativos que buscam apurar se Sandra, sua mãe, é a culpada pela morte do pai.
O primeiro ato se detém nas investigações iniciais, com reconstituições minuciosas dos momentos anteriores à queda e morte do pai e depoimentos desconfortáveis em que Sandra e Daniel são obrigados a prestar contas de cada detalhe e possíveis contradições em seus relatos. Esta tônica somente se agrava no decorrer do filme, que submete Sandra e Daniel ao escrutínio impiedoso de todos os envolvidos no julgamento – incluindo a aluna que a entrevistava para um trabalho acadêmico no dia da morte do marido, o psiquiatra que o acompanhava desde o acidente do filho e especialistas forenses que apresentam argumentos fortíssimos para ambas as possibilidades de assassinato ou queda acidental (ou suicídio).
Se você tentar ficar ao lado de Sandra ou contra a personagem, boa sorte. E se conseguir fazê-lo sentindo-se convicto de sua posição, há algo bastante errado na sua interação com o filme. Pois este não nos dá fundamento algum para ter qualquer tipo de certeza sobre o que de fato aconteceu. E é esse o principal drama de todos os personagens, principalmente Daniel, que não sabe o que é pior: acreditar que o pai se suicidou e escolheu deixá-lo de forma tão cruel ou acreditar que a própria mãe o matou. Mesmo Sandra não consegue acreditar que o marido se matou, mas uma queda acidental lhe parece também improvável.
A certeza que temos é que “Anatomia de uma Queda” preocupa-se justamente com o que fazemos quando a incerteza, a impotência, o preconceito, o ressentimento ou a vergonha obscurecem qualquer possibilidade de se julgar com justiça e sobriedade as relações e o destino dos outros. A diretora Justine Triet faz isso se aprofundando em um sem número de temas que consegue desenvolver sem deixá-los de lado e sem dar respostas fáceis ao espectador. Prova disso é que quanto mais minhas amigas e eu falávamos do filme, mais encontrávamos conflitos, tensões e realidades psicológicas que permearam a trama de maneira sólida e sutil, sem nunca soarem expositivas ou forçadas.
Trata-se de um exercício de controle cinematográfico e filosófico muito bem sucedido, e uma experiência cinematográfica atípica (e, talvez, frustrante) pra quem está acostumado a ter tudo bem resolvido no final do filme. Assim como Daniel, o espectador é também responsável por decidir em que e em quem acreditar, e deve fazê-lo por sua própria conta e risco.
Por: Pedro Paulo Coelho