Como as crianças vivem o tempo? Essa pergunta, aparentemente simples, nos convida a refletir sobre um aspecto essencial da existência humana: a temporalidade. A experiência do tempo não é apenas uma medida objetiva — feita por relógios ou calendários — mas uma vivência subjetiva e relacional que se transforma ao longo da vida. Para a psicologia e a fenomenologia, compreender essa vivência é essencial para entender o desenvolvimento infantil e, sobretudo, o modo como a criança se relaciona com o mundo, com os outros e consigo mesma.
- Edmund Husserl: o tempo como fluxo da consciência
Para o filósofo Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, o tempo não é uma sequência de instantes objetivos, mas uma estrutura da própria consciência. Em sua fenomenologia do tempo interno, Husserl argumenta que a experiência do tempo é composta por três momentos inseparáveis:
• Retenção (retenção daquilo que acaba de acontecer);
• Impressão (presente imediato);
• Protensão (antecipação do que virá).
Essas estruturas são fundamentais para a constituição da temporalidade vivida. Quando aplicamos essa teoria à infância, compreendemos que a criança não vivencia o tempo como um adulto: sua capacidade de reter o passado e protender o futuro está em formação. A criança vive mais imersa no presente imediato, com retenções curtas e protensões vagas. Isso ajuda a explicar, por exemplo, por que noções como “amanhã”, “daqui a uma semana” ou “ano que vem” são inicialmente incompreensíveis para ela — são categorias temporais que exigem uma estruturação da consciência que ainda está em desenvolvimento.
- Jean Piaget: a construção do tempo como estrutura cognitiva
Jean Piaget, em sua epistemologia genética, aborda o tempo como uma conquista do desenvolvimento cognitivo. Para ele, a criança não nasce com a noção de tempo pronta — ela a constrói por meio da interação com o mundo, especialmente através da ação e da coordenação de eventos.
Piaget divide essa construção em estágios:
• Sensório-motor (0 a 2 anos): a criança ainda não possui noção de tempo como sucessão, apenas vive no imediato.
• Pré-operatório (2 a 7 anos): surgem as primeiras noções de antes e depois, mas ainda sem consistência lógica.
• Operações concretas (7 a 11 anos): começa a entender durações, simultaneidade e reversibilidade dos eventos.
• Operações formais (a partir dos 12 anos): consolida a compreensão do tempo como sistema lógico e relacional.
Diferentemente de Husserl, que fala da vivência do tempo, Piaget se concentra na compreensão do tempo como estrutura mental. A criança, ao organizar ações no espaço, constrói também sequências temporais — o tempo se articula a partir da experiência com o mundo físico.
- Eugène Minkowski: o tempo vivido como expressão da vida
Minkowski, psiquiatra fenomenológico influenciado por Bergson e Husserl, oferece uma ponte entre essas duas visões. Para ele, a experiência do tempo está profundamente ligada ao modo como a pessoa está lançada na vida. O tempo vivido é uma expressão do impulso vital — aquilo que dá movimento, projeto e sentido à existência.
Na infância, esse impulso vital é abundante: o tempo é vivido de forma intensiva, muitas vezes desligado de metas ou planos futuros. Minkowski descreve esse fenômeno como uma vivência plena do presente, o que se conecta tanto com a ideia husserliana do agora quanto com a imaturidade cognitiva apontada por Piaget.
Além disso, para Minkowski, distúrbios na vivência do tempo podem indicar patologias — como ocorre em certos quadros depressivos onde há um encurtamento do futuro ou na esquizofrenia, em que o tempo pode se desarticular. Na infância, essas observações são valiosas para compreender como certas vivências traumáticas ou transtornos podem interferir no desenvolvimento saudável da experiência temporal.
Conclusão
A criança vive o tempo de forma diferente do adulto — e isso não é uma falha ou uma imaturidade no sentido negativo, mas uma modalidade própria de existência. Enquanto Husserl nos ajuda a entender a estrutura fenomenológica do tempo vivido, Piaget oferece uma leitura do tempo como construção cognitiva, e Minkowski nos leva a ver o tempo como expressão da pulsação vital da existência.
Dr. Danilo Suassuna, como psicólogo, lembra que acompanhar o desenvolvimento da vivência temporal nas crianças é fundamental não apenas para o processo educativo, mas também para a escuta clínica. Entender como a criança vive o tempo é entender também como ela vive o mundo, as relações e a si mesma.