Rollo May (1973) afirma que se até o século XIX o amor era visto como solução para os problemas humanos, a partir do último século passa a ser um problema. Enquanto século de transição, o séc. XX alavancou profundas mudanças de paradigma na cultura e nas relações. Verdades imutáveis tornaram-se relativas à medida que as Grandes Guerras e a evolução científica e tecnológica fomentaram cada vez mais a destradicionalização da sociedade e a desmagicização do mundo. De maneira inversamente proporcional, o ser humano vem facilitando e aprimorando sua relação com as coisas até quase esgotar de sentido suas relações com o outro.
Há um desencantamento daquilo que é humano. Byung Chul-Han (2015) atribui isso à pressão pós-moderna pela supremacia da vida ativa. Nela, é preciso que nos tornemos algozes de nós mesmos na busca pela máxima eficiência e produtividade, não havendo, portanto, lugar para a contemplação e muito menos para a dor e os limites humanos. Os dilemas existenciais passam a esvaziar-se de sentido por seu caráter de interromper as engrenagens que sustentam uma vida ativa. Para que tais dilemas sejam silenciados, é preciso silenciar o outro.
O outro, como aquele que é fundamentalmente um não-eu, é o arauto da diferença. Para Heidegger (2003), é na intimidade da diferença que se encontra o suporte da unidade entre o ser e o outro. A diferença é a mediadora que entrega mundo e coisa para os seus modos de ser – ser em relação ao outro. Logo, sob a ótica relacional, o contato verdadeiro pressupõe a diferenciação entre duas pessoas distintas e suas experiências no mundo. Nessa diferenciação, torna-se também possível o contato com o semelhante sem que se sacrifique a própria singularidade, constituindo o que Martin Buber (1979) chama de atitude EU-TU.
A dinâmica das relações atuais focada na potência de consumo e de prazer, ainda que aumente nosso senso de eficiência, constitui ao mesmo tempo uma perda dramática da capacidade de contato com a diferença e, portanto, de estabelecer encontros genuínos. Chul-Han explica que se antes participávamos do mundo sob a lógica imunológica – a de nos defender do outro, do estranho, do diferente, do que está do lado de fora e, justamente por isso, constituir-nos e afirmarmo-nos como eu na lida com o outro -, hoje impera sobre nós a lógica neuronal, sob a qual o outro nem existe, mas é anulado pela hiperinflação do eu.
Observa-se, então, uma ênfase excessiva na atitude EU-ISSO, pois a supremacia da vida ativa e o sufocamento da diferença e da negatividade da vida resulta na “coisificação” das pessoas. Tal dinâmica estrutura perturbações psicológicas específicas de nosso tempo, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, a Síndrome de Burnout e os Transtornos de Humor.
Rollo May vai mais longe e descreve nossa sociedade como esquizóide, condição generalizada de evitação de relacionamentos estreitos que pode atingir o ápice do embotamento afetivo e do desligamento da realidade. O autor enxerga nossa característica esquizóide como uma defesa contra a hostilidade, o abandono e a impotência vividos em relações onde o amor e a confiança foram distorcidos. A pessoa esquizóide está convicta de não ser estimável e vive em pavor do “verdadeiro amor” – pois ameaça profundamente sua existência. Ao mesmo tempo, “o homem esquizóide é o produto natural do homem tecnológico”, o qual é impelido pela cultura a um desligamento e mecanização cada vez maiores.
É este amor distorcido que acredito ser um dos grandes problemas de nosso tempo: um amor que existe apenas na igualdade, na homogeneização e na morte da diferença, fazendo com que uns sujeitem-se à histeria do autoaprimoramento constante (“tudo posso”) enquanto outros definham na depressão e apatia crônica (“nada posso”).
A minha urgência em refletir sobre isso parte do atendimento a clientes em consultório que expressam de maneiras diferentes os dois polos desse adoecimento generalizado. Acreditando que precisam ser altamente responsivos às constantes mudanças sociais e do mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que devem estar imunes (quase insensíveis) às próprias limitações, adolescentes e adultos chegam ao consultório ansiosos, deprimidos, esgotados e, não raro, desesperados por não atingirem o ideal de pessoa que se vêem obrigados a ser para “vencer na vida”. Acompanho também casais cujas tensões e desentendimentos devem-se em grande parte à expectativa de igualdade que nutrem entre si, querendo que um lide com suas limitações e sentimentos da mesma forma que o outro lida. Infelizmente, é pela pressão à igualdade que muitos se distanciam emocionalmente até perderem a identidade própria e/ou a identidade enquanto casal.
As redes sociais somente fomentam a histeria da igualdade, colocando-nos constantemente em contato com a vida do outro, as opiniões do outro e as experiências do outro, não como um convite à diferenciação, mas como uma pressão à exposição (pornográfica) de si mesmo que acaba roubando a vida daquilo que é único e sagrado.
Já do lado de cá, reparo também em mim que por vezes me sinto incompetente por não atender da maneira como meus mentores atendem ou por não viver a religião e a espiritulidade tal como é pregada pela família e pela igreja. Passei a perceber o quanto meu senso de valor ainda depende de ser igual, de emular pessoas que admiro e amo como forma de amá-las e conquistar o seu amor (novamente, um amor distorcido, pois exige a distorção de si mesmo).
Compartilhando isso com a Dra. Virginia Suassuna, pessoa que amo e admiro, escutei dela algo que tem me curado cada vez mais da histeria da igualdade: “nós temos nossas semelhanças, mas eu posso me sentir muito mais amada por você na sua diferença”.
Isso porque amar é abraçar e abraçar-se na totalidade de quem se é. Se apenas o igual é abraçado, morre o que nos torna únicos e dá sentido à existência.
Espero com isso despertar em você mais urgência em olhar para e afirmar sua diferença e a diferença do outro. Esta é uma tarefa que exige profundas e difíceis revisões na sua maneira de enxergar e lidar com seus sentimentos, seus pensamentos, suas atitudes, suas relações e sua história. A afirmação da própria diferença passa muitas vezes pelo contato com a rejeição, o abandono, o medo, a raiva e, por fim, com a solidão. Pois ainda que você encontre aceitação e apoio de alguns, o caminho até a sua diferença e a coragem de vivê-la só pode ser feito primeiro e principalmente por você.
Se sozinho estiver muito difícil, não hesite em buscar ajuda de um terapeuta.
Pedro Paulo Coelho Leão da Cunha (CRP 09/10277)
Psicólogo, Gestalt-terapeuta e palestrante sobre saúde existencial.
REFERÊNCIAS
May, R. (1973). Eros e repressão – Amor e vontade. Petrópolis: Vozes.
Chul-Han, B. (2015). Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes.
Heidegger, M. (2003). A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes.
Buber, M. (1979). Eu e tu (2ª ed.). São Paulo: Moraes.