Ensaio: Falência do tempo – Pandemia provoca a ilusão de um futuro
Este é um tempo de falências. Por toda parte nos chegam notícias de uma falência múltipla: de órgãos corporais, de sistemas de saúde, de famílias, de empresas, da razão, da presidência. E de todas as falências que compõem este tempo, talvez a mais discreta, embora manifestada em tantos detalhes e sentida por muita gente, seja a falência do próprio tempo.
Ouço dos amigos, dos parentes, ouço dos desconhecidos que me alcançam em vídeos cômicos ou melancólicos: isolado em quarentena, o tempo estancou e se recusa a exercer o seu efeito. As horas se repetem, indistinguíveis, indiferentes, e revelam sua absoluta inutilidade, dispostas apenas a expor o cortejo das nossas tragédias. Às notícias interminavelmente tristes, somam-se a impotência, o temor, o tédio, o desalento, e assim vão produzindo algo como um inchaço do presente – que ofusca até mesmo o passado mais próximo, e parece bloquear a vista do futuro inteiro.
Não será a primeira vez que se revela a maleabilidade do tempo, sua subjetividade, sua submissão às leis da incerteza. Sobre a relatividade do tempo, aliás, a tão atacada ciência já cuidou de oferecer fórmulas convincentes. Em situações críticas, porém, não é absurdo dizer que a imprecisão se agrava, que relógios e calendários se mostram ainda mais descartáveis, arbitrários, infames.
O alemão W. G. Sebald devotou quase toda sua obra literária, das mais potentes da nossa época, a compreender as nuances do trauma histórico. É na boca de Austerlitz, seu personagem mais emblemático, que ele situa palavras sobre o tempo, que “não avança de forma constante, mas se move em redemoinhos”, que é marcado por “estagnações e irrupções”, que “evolui sabe-se lá em que direção”. Habitado pelo trauma desde a infância, Austerlitz por vezes se deixa tomar pela esperança de que o tempo não passe, para que nada tenha se passado, para que não seja verdade o que conta a História.
Imersos como estamos no âmago de um possível trauma, coletivo e disperso, não é fácil decifrar o sentido da paralisia temporal que nos toma. Não é o passado o que tentamos negar agora, pelo contrário: a maioria de nós parece contemplar até com certa nostalgia os meses, as semanas, os dias que antecederam este presente atípico. Eram dias de liberdade e inocência: saíamos às ruas, fazíamos festas, abraçávamos os amigos, desconhecíamos a medida da contenção que logo tomaria conta de tantas vidas. Vivemos agora uma ausência desse passado, como se ele tomasse distância e já não nos pertencesse.
“Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes nos leitos das suas casas ou dos hospitais, e não são só eles, pois um tanto de infelicidade pessoal já basta para nos cortar de todo o passado e de todo o futuro”, descreve Austerlitz. Nós, em nosso tempo, percebemos que basta a iminência da dor e da infelicidade, ou basta que adquira um caráter amplo e social, para que toda a ordem temporal colapse.
O futuro é o que mais estremece, o que mais gera desconfiança. Por toda parte se propaga o discurso de que o mundo mudou para sempre e jamais seremos os mesmos. Em tal discurso, o futuro é estreito, não se estende além dos próximos meses, do próximo ano, desconsidera a possibilidade dos anos plurais, das décadas. Nessa ausência de horizonte, a paralisia do tempo se torna paralisia geral, se torna pandêmica. Tantos de nós vamos cancelando projetos, e nos parecem insensatos os trabalhos que faríamos, as festas que daríamos, inúteis as aulas que poderíamos cursar, fúteis os livros que escreveríamos.
Contra toda a paralisia, entre as muitas ações que o presente nos exige, talvez não seja pouco importante a luta contra a falência do tempo. Ou melhor, a luta contra a ilusão de que já não há tempo, de que o passado não nos pertence, de que o futuro caducou ou inexiste. Não deixemos que a obscuridade do presente nos cegue: é amplo o horizonte do tempo e é em direção a ele que avançamos. Todo projeto, todo trabalho, todo livro encontrará ainda o seu momento.
Pois o tempo, é Borges quem diz, não é mais que a sucessão, a incontível cadeia de acontecimentos. Enquanto todos dormem, ou batem panelas, ou ouvem inertes os estúpidos pronunciamentos, o silencioso rio do tempo está fluindo nas ruas, nas praças, nos campos, no espaço, está fluindo entre os astros. Não há de demorar o dia em que as notícias ruins serão esparsas, e em que saberemos contar outras histórias. Não há de demorar o dia em que despertaremos para ver que o presente virou passado, e que um futuro inteiro nos aguarda.
Julián Fuks
Julián Fuks é escritor e crítico literário. Nascido em São Paulo em 1981, é autor de A ocupação (2019) e A resistência (2015), livro vencedor dos prêmios Jabuti, Saramago, Oceanos e Anna Seghers. É doutor em Teoria Literária e mestre em Literatura Hispano-americana, ambos pela Universidade de São Paulo. Suas obras já foram traduzidas para nove línguas e publicadas em diversos países.
Fonte: UOL