Paradoxos da dor: de corpo e alma e de existência

  • 11 out

O corpo e suas apresentações sempre foram um enigma em qualquer tempo da história da humanidade. Fonte de surpresas e embaraços, nossos corpos provocam uma eterna sensação de inadequação e estranheza. Diante dela assistimos a uma infinita espiral de ofertas de modelagem e suposto aperfeiçoamento de sua forma e funcionamento. Naturalizamos, em nome da saúde e dos índices de qualidade de vida, uma série de intervenções corporais e variadas dietas, que se atualizam conforme as leis de oferta e demanda do mercado e do capital.

Com Lacan, cujo ensino pretendeu uma releitura da obra de Freud, aprendemos que o corpo é superfície de gozo, de um excesso pulsional, em uma cultura que prima pelo consumo irrestrito e irrisório. Para além da anatomia, as manifestações corporais do sofrimento são cada vez mais frequentes e motivo de demanda por tratamento psíquico. Freud, mesmo quando ainda utilizava a hipnose, situa a clínica do mal-estar humano como aquela surgida no resto da operação do corte epistemológico realizado pela ciência moderna. E, portanto, também o é em relação à biomedicina, quando esta tenta se enquadrar nos moldes científicos. Desde o nascimento da clínica médica (a do Olhar, segundo Foulcault), a escuta é deixada de fora, e, portanto, também o sujeito (do inconsciente, como Lacan demonstra no início de seu ensino). Em um texto denominado “A ciência e a verdade”, o psicanalista francês afirma que o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o mesmo da ciência. É assim que o analista escuta algo que escapava ao corpo dos cadáveres pesquisados nos primórdios da clínica médica, uma suposta alma, sob a qual iria operar.

Mas a alma, na originalidade da psicanálise, seria escutada a partir do corpo. Aquele que se desvela desde sempre aos ouvidos do psicanalista como sendo d’alma. Ou seja, feito da mesma matéria que o chamado psiquismo humano. Ouvir a dor, ou a ausência dela, como observado nas paralisias histéricas, eis a proposta freudiana que marca o início de um longo caminho e de um novo saber.

Dor de corpo e alma, dor que se esconde nas anestesias ou que se presentifica na ruminação do pensamento do obsessivo. Dores que andam pelo corpo como as da fibromialgia, diagnóstico da contemporaneidade, mas cuja sintomatologia se verificava já nas histéricas de Freud. Dor que pode se manifestar pelo sofrimento do sentimento de inadequação corporal ou pelos transtornos alimentares, também tão atuais. Dor que só se tem acesso pela escuta, pois é só pela forma como é contada que é possível vislumbrar algo sobre como se delineia. Dor que, portanto, não se mede, mas que pode clamar por ser decifrada.

Em meu recém-publicado livro, “Paradoxos da dor: da dor de existir às dores no corpo”, proponho que para cada sujeito a dor pode ter uma função específica. Sendo a análise um caminho para que este possa encontrar um meio de saber fazer com a angústia da dor de existir. O corpo assim, trona-se suporte de um gozo impossível de se colocar em palavras. Dessa maneira, tanto na sua vertente de sofrimento, quanto na dor de se confrontar com a pura existência e ausência de desejo, as dores no corpo podem apontar para um ser de fala mapeado por significantes, mas primordialmente desamparado e inadequado ao seu próprio corpo. Fato recusado pela cultura atual, mas que lotam os consultórios dos analistas.

Autor: Dr. Pedro Moacyr
@pedro.moacyr

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